O fenómeno da “parirgrinação”

Pelo menos, mais de 30% das mulheres que pariu em Portugal Continental no ano de 2021 não vivenciou um parto natural.

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Nelson Garrido

No passado domingo, na sua rubrica semanal Isto é Gozar com quem Trabalha, Ricardo Araújo Pereira recorreu ao termo “parirgrinação”, ao fazer referência à badalada notícia de uma mulher grávida que percorreu mais de 200 quilómetros para ser assistida num serviço de urgência obstétrica. Ao longo do último ano, a frequência de manchetes de jornal com lamentáveis notícias semelhantes à referida tem sido elevada.

A par disso, fomos também recentemente confrontados com a confirmação, por parte do Polígrafo, de que há maternidades privadas com 100% de cesarianas. A este respeito, o Observatório de Violência Obstétrica em Portugal divulgou nas suas redes sociais dados do Instituto Nacional de Estatística, da Entidade Reguladora da Saúde, e da Pordata que, apesar de nem todos coincidirem em números, demonstram claramente que a taxa de cesarianas no sector privado é muitíssimo mais elevada do que nos hospitais públicos.

Como se não fosse suficiente os números revelarem que, pelo menos, mais de 30% das mulheres que pariu em Portugal Continental no ano de 2021 não vivenciou um parto natural, o Observatório acrescentou, ainda que: “Chegam-nos todos os dias histórias de cesarianas realizadas sem motivo clínico, por conveniência de agenda do hospital ou do profissional de saúde e na sequência de induções sem motivo clínico”. Verdade seja dita, a cesariana é uma cirurgia que deve ser realizada para evitar impactos irremediáveis na saúde, ou até a morte, de mães e crianças que, de outra forma, não sobreviveriam ao parto, e não por razões de conveniência. Aliás, na sua origem, a palavra “cesariana” era sinónimo de “sentença de morte”, por todos os riscos que acarretava.

Sou do entendimento de que todo o mediatismo associado à divulgação de situações como as referidas, em que grávidas se vêm obrigadas a percorrer centenas de quilómetros para aceder a cuidados de saúde obstétricos no Serviço Nacional de Saúde (SNS), gera na sociedade uma “falsa sensação de insegurança”.

No entanto, a verdade é que, enquanto isso continuar a acontecer, o fenómeno da “parirgrinação” deixará de ser (apenas) literal, e repercutir-se-á cada vez mais numa “parirgrinação” das instituições de saúde públicas para as privadas, com as consequências que com tal opção as mulheres tiverem que acarretar, tal como os números têm indicado. “Que tenhas uma hora pequenina” continuará a ser a expressão mais utilizada, ao invés de ser desejado um parto normal, espontâneo, e sem induções, tal como preconizado pelas recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS).

É ainda de notar que, em Fevereiro de 2022, um estudo publicado na revista médica The Lancet Regional Health – Europe veio revelar que, durante o primeiro ano da covid-19, em Portugal, as mulheres grávidas foram mais sujeitas a práticas hospitalares não recomendadas pela OMS, tais como a episiotomia ou a manobra de Kristeller, do que a média das mães de outros 11 países integrados na região europeia daquela organização.

A solução só pode ser uma: solidificar a base. Falando de violência obstétrica, também um tema que (felizmente) tem estado nos ouvidos do mundo, sabemos que é aos profissionais de saúde que, na maioria das vezes, são imputados os comportamentos associados a esta forma de violência. No entanto, também o Estado é responsável pelos maus-tratos obstétricos, enquanto garante dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

Um dos tipos de violência obstétrica, do qual raramente se ouve falar é a violência institucional que, tendo como razão subjacente a precariedade de um sistema de saúde que submete os seus profissionais a condições desumanas de trabalho, com falta de recursos, baixas remunerações, sobrecarga horária, entre outros aspectos, acaba por limitar em grande medida o acesso aos serviços oferecidos e a qualidade dos mesmos. Nesse sentido, são factores como estes, demonstrativos da precariedade do sistema, que considero estarem na base de grande parte das más práticas obstétricas em Portugal.

Enquanto o alicerce do SNS, que são os seus profissionais, não for dotado dos meios necessários para um pleno desempenho das suas funções, este tipo de situações continuará inevitavelmente a ocorrer, e os direitos humanos da mulher grávida continuarão longe de serem plenamente respeitados nas instituições de saúde portuguesas.

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