Os parasitas estão em apuros? Estudo pioneiro indica que sim

Análise de peixes de estuário nos EUA associa aquecimento oceânico à diminuição de parasitas importantes para os ecossistemas. Se fossem mamíferos, teríamos “acções de conservação”, lamenta cientista.

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Indivíduos conservados da espécie Clupea pallasii, um tipo de arenque capturado no estuário de Puget Sound, objectos de estudo para ver se continham parasitas Katherine Maslenikov/Museu Burke da Universidade de Washington

Ao contrário do que acontece com grupos de animais como os mamíferos e as aves, sabe-se muito pouco acerca do impacto das alterações climáticas nos parasitas, que ao invadirem todo o tipo de animais são uma parte importante do equilíbrio de vários ecossistemas da Terra. Agora, um estudo pioneiro analisou os parasitas em oito espécies de peixes apanhados ao longo de várias décadas num estuário dos Estados Unidos e mostrou que as espécies de parasitas que passam por três ou mais hospedeiros ao longo do seu ciclo de vida foram diminuindo de abundância a um ritmo de 11% por década.

O trabalho associa o aquecimento oceânico à diminuição daquelas espécies e diz ser necessário investigar se esta é ou não uma tendência generalizada. “Há muitas pessoas que avançam com a hipótese de que os parasitas podem estar em apuros”, explica ao PÚBLICO Chelsea Wood, investigadora da Escola de Ciências Aquáticas e Piscatórias da Universidade de Washington e primeira autora do estudo publicado há uns dias na revista Proceedings of the National Academy of Sciences. “Este conjunto de dados dá a primeira prova empírica em relação a essa hipótese. Precisamos de mais dados antes de podermos dizer o que está a acontecer em outros lugares do mundo.”

Chelsea Wood apresenta-se como uma ecóloga de parasitas. Ou seja, estuda as relações dos parasitas com os seus hospedeiros no contexto dos ecossistemas. Esta especialização foi um “acidente”, diz-nos, já que o seu desejo inicial era tornar-se uma bióloga marinha.

“O primeiro projecto em biologia marinha em que estive envolvida foi sobre os parasitas trematodes de gastrópodes [aquáticos]”, explica-nos por correio electrónico. Os trematodes são uma classe de vermes parasitas que pertencem aos platelmintes. Algumas espécies desta classe, que infectam gastrópodes, podem também infectar humanos, provocando a esquistossomose, também conhecida por bilharzíase. “No início, achei os parasitas nojentos. Mas depois de algum tempo de trabalho, eles começaram a 'fazer-me comichão' e nunca mais os larguei”, refere, acrescentando um sorriso à frase.

Ciclo de vida complexo

Depois, a ecóloga utiliza o exemplo da espécie trematode Euhaplorchis californiensis para explicar a importância dos parasitas para os ecossistemas. Este parasita é uma das espécies que surgem no estudo da PNAS e percorrem vários hospedeiros ao longo do seu ciclo de vida.

Os ovos deste parasita estão nos ecossistemas entre marés: ficam fora de água na maré vaza e submersos na maré cheia. Quando os ovos eclodem, as larvas rastejam e penetram em gastrópodes. Nestes animais, elas devoram as suas gónadas e replicam-se. Os gastrópodes não se podem reproduzir, mas também não morrem, vão produzindo parasitas bebés que, por sua vez, penetram espécies de peixes da ordem Cyprinodontiformes, que são pequenos peixes que vivem em cardumes. Nestes peixes, os parasitas formam quistos no cérebro.

De seguida, quando estes peixes são predados por uma ave, os parasitas passam para uma nova forma: na presença dos fluidos gástricos da ave, saem do quisto e desenvolvem-se nos indivíduos adultos. Finalmente, enquanto adultos, reproduzem-se entre si e produzem ovos que são libertados para o ambiente nos dejectos das aves, recomeçando o ciclo.

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Dois parasitas Microcotyle sebastis que pertencem à classe Monogenea do filo dos platelmintes e foram retirados das guelras do Sebastes caurinus, uma espécie de peixe-vermelho do oceano Pacífico Katie Leslie/Universidade de Washington

É a fase em que os parasitas passam dos peixes para as aves que Chelsea Wood usa como exemplo para demonstrar a importância dos parasitas para os ecossistemas. Quando está enquistado no cérebro do peixe, “o parasita é diligente e inventou uma forma de maximizar as hipóteses de alcançar a terra prometida – o estômago da ave”, avança a especialista. “Altera o comportamento do hospedeiro para fazer com que seja mais provável acabar no bico de uma ave.”

Ao contrário dos peixes não infectados por parasitas, aqueles que estão infectados nadam mais junto à superfície e brincam. Por isso, há uma probabilidade 10 a 30 vezes maior de serem comidos por uma ave. Isso faz com que o parasita tenha uma hipótese muito maior de continuar o seu ciclo de vida, mas também permite às aves terem mais acesso a alimento. Esta dinâmica “pode apoiar as populações de aves – o que não é pouca coisa num mundo onde as aves, particularmente as aves aquáticas, estão ameaçadas”, defende a ecóloga.

O fenómeno descrito acima acaba por ser uma marca deste grupo de animais, influenciando as cadeias alimentares, argumenta a especialista. “A manipulação comportamental dos hospedeiros é comum nos parasitas”, informa Chelsea Wood. “Em todo o mundo, a energia está a ser guiada ao longo das cadeias alimentares pela intervenção dos parasitas. Sem parasitas, essas cadeias alimentares iriam ser muito diferentes.” É por isso que é importante compreender o impacto do aquecimento global e das alterações climáticas nestas dinâmicas, mesmo para os parasitas, que com frequência são vistos com algum repúdio e estão associados a doenças humanas.

“As pessoas pensam normalmente que as alterações climáticas vão fazer prosperar os parasitas, e que vamos ver um aumento de surtos de parasitas à medida que o mundo aquece”, explica a investigadora, citada num comunicado da Universidade de Washington. “Para alguns, isso pode ser verdade, mas os parasitas dependem dos hospedeiros, e isso torna-os particularmente vulneráveis num mundo em mudança, onde o destino das espécies hospedeiras está a ser embaralhado.”

A Colecção de Peixes da Universidade de Washington contém mais de 300.000 espécimes de peixes adultos Katherine Maslenikov/Museu Burke da Universidade de Washington
Frasco com espécies de peixes preservadas em líquidos da Colecção de Peixes do Museu Burke da Universidade de Washington Katherine Maslenikov/Museu Burke da Universidade de Washington
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A Colecção de Peixes da Universidade de Washington contém mais de 300.000 espécimes de peixes adultos Katherine Maslenikov/Museu Burke da Universidade de Washington

Ecossistema de Puget Sound​

Para estudar o impacto das alterações climáticas nos parasitas, é necessário analisar uma população de parasitas ao longo do tempo num dado ecossistema. Mas como se faz isso? Chelsea Wood e a sua equipa decidiram olhar para a Colecção de Peixes da Universidade de Washington (UW). Estes peixes, recolhidos ao longo de décadas, estão conservados em fluidos químicos. Se tiverem parasitas, eles também estarão conservados.

A equipa escolheu oito espécies de peixes apanhados no estuário de Puget Sound, o segundo maior estuário dos Estados Unidos, que abraça a cidade de Seattle, no estado de Washington.

“Tentámos escolher peixes ao longo da diversidade de tamanhos corporais e estilos de vida, para que fossem o mais representativos possível do ecossistema de Puget Sound”, explica-nos a cientista. “Mas mais importante, seleccionámos peixes que estivessem bem representados na Colecção de Peixes da UW, para que pudéssemos obter um maior número de indivíduos para cada espécie de peixe.”

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A investigadora Chelsea Wood dedica-se à ecologia dos parasitas Benjamin Drummond

Os peixes mais antigos da colecção que foram estudados foram capturados na década de 1880. Os mais recentes são de 2019. Ao todo, a equipa estudou 699 espécimes de peixes e contou 17.259 parasitas de 85 taxa diferentes. Como os químicos usados para a conservação dos peixes destroem o ADN, a identificação dos parasitas teve de ser feita a partir da análise com microscópico de pequenas fatias dos peixes. Os investigadores nem sempre conseguiram chegar à espécie de cada parasita, mas foram identificados copépodes, parasitas crustáceos, parasitas da subclasse das sanguessugas, vários platelmintes diferentes, parasitas da classe das ténias, do filo das lombrigas, entre outros.

Como tinham peixes capturados ao longo das décadas, a equipa identificou a prevalência dos parasitas durante esse tempo e concluiu que os parasitas que se serviam de um ou de dois hospedeiros se mantiveram estáveis ao longo do tempo. Mas os parasitas com muitos hospedeiros, que equivaleram a 52% dos taxa identificados pelos investigadores, foram-se tornando menos abundantes. “Das dez espécies de parasitas que desapareceram completamente desde 1980, nove dependiam de três ou quatro hospedeiros”, adianta o comunicado.

Declínio grave

Ou seja, de década para década, cerca de 11% dos parasitas com três ou mais hospedeiros deixaram de ser encontrados nos peixes da colecção que a equipa analisou. Ao mesmo tempo, a temperatura superficial das águas do estuário aumentou um grau Celsius entre 1950 e 2005.

“Houve uma correlação fortemente negativa entre abundâncias de parasitas e a temperatura superficial do mar. Em anos quentes houve menos parasitas e em anos frios houve mais parasitas”, resume Chelsea Wood. A investigadora pensa que a temperatura não causou um impacto directo nos parasitas. Se fosse esse o caso, os parasitas que têm apenas um hospedeiro seriam tão ou mais afectados do que aqueles com um ciclo de vida complexo.

“O facto de termos visto os efeitos apenas entre os parasitas com três ou mais hospedeiros nos seus ciclos de vida sugere, para mim, que a causa tem que ver com os hospedeiros”, explica. “Quanto mais espécies hospedeiras o parasita requer [para completar o seu ciclo de vida], mais fácil é que alguma coisa falhe, particularmente quando se mudam as condições ambientais no contexto do aquecimento global.”

Por isso, talvez o problema nem seja a temperatura em si. O factor determinante poderá ser outro. “No nosso estudo, talvez se dê o caso de a causa subjacente ser algo que esteja correlacionado tanto com a temperatura superficial do mar, como com os parasitas – a acidificação do oceano, os fenómenos de hipoxia [falta de oxigénio] ou as explosões de algas nocivas”, exemplifica. “Para termos certeza, será necessário fazer mais estudos.”

De qualquer forma, Chelsea Wood está preocupada com o que está a acontecer não só nas águas de Puget Sound, mas com os parasitas em todo o mundo. “O grau de declínio [observado] é grave. Se ocorresse noutras espécies de animais com que as pessoas se preocupam, como os mamíferos e as aves, iria provocar acções de conservação”, adianta no comunicado. “Tenho esperança de que o nosso trabalho inspire outros ecólogos a pensar nos seus próprios ecossistemas, a identificar os espécimes que têm nos museus e a verem se esta tendência é única de Puget Sound ou se é algo que também está a ocorrer noutros lugares.”