Até os assassinos de Amílcar Cabral “certamente se arrependeram no minuto seguinte”
Dauda Bangoura lutou pelo PAIGC e privou com Amílcar Cabral, assassinado há 50 anos. Após a independência da Guiné, trabalhou no Ministério da Agricultura. Testemunho recolhido pelo líder do PAIGC.
Um encontro há muito marcado com este senhor ia finalmente acontecer, logo em vésperas dos 50 anos do assassínio daquele que a todos os companheiros tornou célebre e que assim ficaram também responsabilizados pelo resgate da memória histórica comum, o desvendar das várias penumbras dessa epopeia, pelo desafio de tentar clarear uma trajectória que se arrisca a ficar enterrada e com ela toda a verdade das suas vidas.
Era Dauda Bangoura, filho de um emigrante da vizinha Guiné, Dai Bangoura, e de uma pepel, Teté Monteiro, nascido em Cupelão, Bissau, a 27 de Abril de 1938.
Eu trazia em agenda o pedido de um jornalista de explorar os eventuais conhecimentos do tio Dauda sobre as circunstâncias e as envolventes do assassinato de Amílcar Cabral, nessa noite fatídica de 20 de Janeiro de 1973, na sede do secretariado do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde), em Conacri. Observados os protocolos que acompanham estes exercícios, quando em face de um combatente da liberdade da pátria não pude esconder a ansiedade do desafio, ao tio Dauda: falar do que souber do complot; de tudo o que se liga ao processo que tinha levado ao assassinato do líder da revolução; do arquitecto e estratego de toda a resistência, armada e política, e que já se encaminhava irremediavelmente para a conquista da independência.
Projectou-se então uma faceta que eu não conhecia do tio Dauda, sentado à minha frente. Aquele que sempre vi calmo, sereno e reservado, mostrou-se agitado e ansioso por falar, mas, contrariamente à minha intenção, implorava por paciência, para compreender que era um desprestígio inaceitável resumir a história de Amílcar Cabral à descoberta das teias que se teceram para produzir a sua morte. Talvez para consolidar a minha compreensão e atenção, tio Dauda adiantou “que mesmo aqueles que participaram desse complot certamente se arrependeram no minuto seguinte, pois só então se terão dado conta da dimensão do homem cuja vida tinham acabado de ceifar”. Prometia-me dizer o que sabia, mas achava primordial começar por aquilo que ele considerava importante e que caracterizava esse extraordinário africano, amante da liberdade e militante da causa dos seus povos.
Percebi que não tinha como o contrariar e rendi-me à realidade de que a entrevista se iria transformar num relato do tio Dauda sobre o que conhece e quer testemunhar da vida e da dimensão política de Amílcar Lopes Cabral, num monólogo directo e sem compromissos:
“Conheci o engenheiro na granja de Pessubé [Guiné-Bissau] em 1952, pouco tempo depois da sua chegada da metrópole. A primeira curiosidade em o conhecer se dirigia ao facto de ser o único africano [na granja], mas esta rapidamente se transformava em fascínio pelo cuidado do seu trato, pela amabilidade como atendia a todos, dispensando uma atenção que não era nem normal nem costumeiro. Ele nunca parava de incentivar os jovens a lançarem-se na produção de hortaliças e mesmo na de feijão. E podia ser procurado nos seus aposentos a qualquer hora do dia, para qualquer dúvida que houvesse ou alguma assistência. Esta atitude não agradava minimamente ao seu imediato superior, que era o engenheiro Nobre da Veiga, situação que se agravou quando Amílcar criou e passou a treinar uma equipa de futebol e que muito se acreditou que teria estado na base da sua expulsão ou transferência para Angola.
O reencontro já se vem a dar em Conacri, em 1959, pouco tempo depois do massacre de Pindjiguiti [3 de Agosto], numa altura em que havia uma forte rivalidade com outros movimentos nacionalistas que também visavam a libertação da Guiné, mas que não admitiam a ligação com os cabo-verdianos. Dentre esses vários movimentos se destacava o MLG [Movimento de Libertação da Guiné] que tinha à testa o Luís Mendes (“Tchalumbé”) e que também gozava de um enorme prestígio entre os nacionalistas reagrupados em Conacri.
A situação era muito difícil e em certa medida desfavorável para Amílcar Cabral, que via a sua economia pessoal trazida de Angola e de Bissau se reduzir a olhos vistos, sem que conseguisse um maior reconhecimento do regime de Sekou Touré [Presidente da Guiné] e sem poder angariar os apoios que pudessem sustentar a luta. Cabral chegou então a considerar uma mudança para o Gana, seguro de que lá teria um melhor acolhimento por Kwame N’Krumah e mais apoios para o esforço da luta, mas esbarrava no reconhecimento de que a distância comprometeria os objectivos e a estratégia definida.
Nessa altura, foram providenciais os apoios de alguns poucos camaradas, que já tinham um emprego de relevo e famílias de referência na Guiné, e que passaram a colocar parte dos seus rendimentos ao serviço do partido [PAIGC]. Aqui então se revelaram as qualidades humanistas de Amílcar Cabral, que cuidava do acolhimento e atendimento dos militantes de uma forma que superava de longe as dos outros líderes, mesmo se esses claramente dispunham de mais recursos. Desta forma, o quarto que eu, Luciano Ndau e Amílcar Cabral partilhávamos em uma pensão deixou de poder receber a avalanche de aderentes que se iam acumulando, o que obrigou a uma mudança para os armazéns de uma oficina que o dono aceitou colocar à disposição. Os números não paravam de aumentar — de pessoas que chegavam e dos que aderiam em Conacri — e Cabral se multiplicava em contactos para poder aceitar e enquadrar a todos.
Foi com base nessa constante procura de apoios que, tendo sido convidado a uma recepção no palácio da República da Guiné-Conacri, Cabral cruzou-se com o embaixador da China e este, fascinado pelo discurso do jovem líder africano, lhe formula o convite para visitar a China.
A viagem à China iria mudar por completo o equilíbrio das forças nacionalistas guineenses em Conacri e consagrar definitivamente o PAIGC e Amílcar Cabral como as entidades mais sérias e representativas da luta pela liberdade do povo da Guiné portuguesa. A missão foi um sucesso retumbante, resultando na oferta de treinamento dos soldados, no fornecimento de equipamento militar e de outros mantimentos. O único senão na altura foram as vicissitudes de ser a primeira vez que a maioria deles entrava para um avião e participava de uma missão política dessa envergadura no estrangeiro. Houve por isso episódios hilariantes: de eu me ter distraído e ido parar a uma fila de embarque totalmente diferente; de outro que esquecera todos os documentos em Conacri; da atrapalhação à mesa na altura das refeições. Mas até nisso voltou a evidenciar-se o carácter humilde e pedagógico de Cabral, que não parava de recomendar a calma e de manifestar a sua compreensão perante as falhas de protocolo que ele considerava sempre absolutamente normais.
Quanto ao assassínio, eu não posso adiantar muito mais do que aquilo que todo o mundo sabe e de que todos já falaram. Eu estava em Candjafra e a notícia caiu como uma bomba, por via de um jovem combatente de nome Adão. Todos falámos logo das divergências que se vinham manifestando nos últimos tempos e que teriam certamente produzido essa conspiração interna. Invadiu-me então o sentimento de uma profunda revolta, pois qualquer que fosse o desentendimento não devia levar ao assassínio. Tudo indicava que estaria no centro dessas divergências a questão da unidade com Cabo Verde e acentuadas diferenças de opinião, o que há muito havia tornado evidente que dessa crispação poderia resultar alguma instabilidade, mas nunca podendo antecipar esse nível de gravidade.
É importante, contudo, ressalvar que se, por um lado, havia uma forte desconfiança com relação aos muitos jovens guineenses que vinham chegando de Bissau e que muitas vezes não eram submetidos a uma verdadeira avaliação da sua preparação e fidelidade — tendo chegado a haver discussões e confrontos com o líder —, por outro lado, também se sabia que a ala cabo-verdiana não se mostrava particularmente satisfeita, por considerar que havia um maior empenho no esforço para a libertação da Guiné-Bissau. Todos estes desacertos se juntaram e combinaram para as falhas que se registaram no quadro de segurança e que terão sido aproveitados pelo colonialismo para a acção macabra de assassinato de Amílcar Cabral.
Foi um terrível choque que causou uma total desorientação. Todos ouvíamos rumores que indiciavam a existência de um ambiente menos saudável no seio do PAIGC, mas estava longe dos acontecimentos para conhecer quaisquer detalhes a esse respeito. Nessa altura eu desempenhava as funções de comissário político na linha da frente e tinha como comandante o Nino Vieira e foi sobretudo a intervenção dele que restabeleceu rapidamente a força e a determinação de todos para o prosseguimento da luta.
Apesar disso, levou algum tempo e foi necessário muito esforço e sensibilização para repor o ânimo e a mobilização dos camaradas, porque de facto Cabral já significava algo bem mais que a simples admiração pelo homem. Todos tinham consciência de que grande parte do que se tinha organizado saíra da sua cabeça. Ele tinha uma visão de conjunto que ultrapassava de longe a percepção da grande e avassaladora maioria dos militantes. E, felizmente, a luta já estava numa fase que já não dava para interromper, nem afrouxar e o novo equipamento militar acabado de chegar a Conacri ajudou a repor a confiança e a determinação de todos.
Quanto aos responsáveis pelo assassínio, apesar de tudo o que ficou dito, não havia dúvidas da interferência da PIDE e, portanto, o convencimento dominante era de que estes teriam interferido na mobilização dos executores, seja dos que criaram o clima favorável, seja do que puxou o gatilho ou dos que quiseram logo se aproveitar desse ambiente para provocar o descalabro do partido e da luta.
Eu conheci, por exemplo, o Inocêncio Kani [comandante da Marinha de Guerra do PAIGC e que disparou o primeiro tiro contra Amílcar Cabral] antes da luta e não mais o encontrei, mas tinha a reputação de controverso e conflituoso, que não deixava escapar nenhuma oportunidade para provocar, para incendiar e para criar pequenos conflitos que não paravam de fragilizar as hostes do partido.
Cabral era um homem alerta e havia sempre insistido na necessidade de prestar atenção aos pequenos detalhes da situação securitária. Falava com frequência da necessidade de se preparar para o pior. Quanto ao que seria da Guiné, caso ele chegasse à independência, é muito difícil vaticinar, porquanto a realidade africana está repleta de líderes que alteraram diametralmente a sua visão e comportamento ao chegarem ao poder. Mas Cabral era muito especial e todos acreditamos que ele teria sido capaz de antecipar os cenários e construído uma visão programática que mantivesse a unidade interna e a concentração no essencial — que seria sempre a melhoria das condições de vida da nossa população.
Infelizmente, ele e o seu pensamento foram esquecidos durante muito tempo, tanto fora como dentro do partido, o que provocou uma autêntica crise na orientação ideológica dos jovens. Temos assistido agora ao retorno dessa linha de princípios e do programa, fortemente sustentados pela liderança actual do partido, o que nos dá a esperança de voltar a ver o partido e o país orientados para a paz e a estabilidade e na rota de um desenvolvimento sustentado, por via de mecanismos transparentes e controlados.”
Este relato do tio Dauda e a capacidade demonstrada para articular todos os aspectos que eu indiquei como de interesse me convencem da importância do seu testemunho sobre a realidade da luta e do assassínio de Amílcar Cabral. A aparente hesitação no tratamento deste assunto em particular se deve em efectivo ao quadro nebuloso que envolveu toda essa ocorrência. Não pude, ainda assim, deixar de reconhecer que terá alguma razão na sua forte convicção de que, neste momento, o menos importante será centrar-se na mão que empunhou a arma, mas na mente que esteve por detrás dessa intenção — e nas muitas que ainda hoje insistem em provocar mais assassinatos ao seu pensamento.
Presidente do PAIGC, herdeiro guineense do partido fundado por Amílcar Cabral