Arrefecer artificialmente o planeta: realidade ou ficção científica?

Não é uma ideia nova, mas a possibilidade de descer quase de imediato a temperatura global está a dar que falar. A geoengenharia já entrou no radar das Nações Unidas e levanta preocupações.

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A geoengenharia solar poderia baixar rapidamente a temperatura global, mas os seus efeitos colaterais não são conhecidos ALEXEY PAVLISHAK/REUTERS

Reflectir a luz do Sol de volta para o espaço para baixar as temperaturas. Parece a ideia perfeita para um filme de ficção científica, mas pode estar perto de ser real. À medida que começamos a ouvir mais os “tiquetaques” do relógio que diz quanto tempo nos resta para mitigar o aquecimento global, as soluções tecnológicas tornam-se cada vez mais inovadoras – ou, como alguns cientistas e activistas ambientais opinam, precipitadas.

O relatório das Nações Unidas que é publicado de quatro em quatro anos para avaliar o impacto do Protocolo de Montreal de 1987 saiu este mês e, pela primeira vez, dedica um capítulo à injecção estratosférica de aerossóis para reduzir a intensidade do Sol. No documento, os alertas para os impactos desconhecidos deste método na natureza acompanham um gráfico que mostra a rapidez com que as temperaturas poderiam baixar num cenário em que a aplicação desta forma de engenharia é bem-sucedida.

Por outro lado, a Casa Branca lançou em Outubro um pedido para formalizar um plano de estudo de cinco anos para investigar formas de mitigar a radiação solar, nas quais se inclui a geoengenharia. E há quem já a veja como um negócio: a Make Sunsets, uma start-up que nasceu com o objectivo de criar soluções de geoengenharia e lucrar com elas, diz já ter começado a injectar pequenas quantidades de aerossóis na atmosfera. A experiência, realizada no México, levou o país a proibir testes de geoengenharia esta semana, dizendo que as acções da empresa foram realizadas sem consentimento prévio.

Inovação ou exagero, não é uma área de investigação nova, mas está nas bocas do mundo.

O que é a geoengenharia?

Geoengenharia solar é o nome dado ao conjunto de tecnologias utilizadas para reflectir a luz do Sol para longe da superfície da Terra. O objectivo é combater o aquecimento global e as alterações climáticas, ao reduzir o calor que contribui para o efeito de estufa, que é causado pela elevada presença de dióxido de carbono e outros gases na atmosfera.

A ideia de reflectir a luz solar apareceu registada pela primeira vez em 1965, num relatório enviado àquele que era, na altura, o Presidente dos Estados Unidos, Lyndon B. Johnson. O documento mencionava a possibilidade de espalhar partículas reflectoras no oceano num custo pouco excessivo, “tendo em consideração a extraordinária importância humana e económica do clima”. A Academia Nacional de Ciências, Engenharia e Medicina dos Estados Unidos reconhece três tipos de geoengenharia, que nunca foram testados em grande escala: a injecção estratosférica de aerossóis, o clareamento de nuvens marinhas e o desbaste de nuvens cirrus (nuvens de espessura fina que contribuem para que a radiação que chega à Terra seja mais intensa).

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Nuvens cirrus Simon A. Eugster

No caso da injecção de aerossóis – o método mais popularizado e com maior fundamento científico –, a lógica está em injectar partículas sólidas que ficam em suspensão na atmosfera, mais particularmente, na estratosfera. Estas “vão permanecer por volta de um ou dois anos”, aumentando a capacidade de reflexão da Terra. Assim, “vai entrar menos radiação solar para o planeta e, sem essa fonte de energia, a temperatura reduz”, explica Alfredo Rocha, professor de Física e investigador no Centro de Estudos do Ambiente e do Mar da Universidade de Aveiro.

Sabia que...

… a erupção em 1991 do vulcão do monte de Pinatubo, nas Filipinas, causou um arrefecimento momentâneo da temperatura média global devido às toneladas de dióxido de enxofre libertadas para a atmosfera?

É consensual na comunidade científica que as partículas de sulfato, cujos efeitos de arrefecimento da temperatura são bem conhecidos devido às erupções vulcânicas, seriam uma boa opção. Um exemplo dado com frequência é a erupção do monte Pinatubo, nas Filipinas, em 1991: após a actividade do vulcão emitir toneladas de dióxido de enxofre para a atmosfera, a temperatura média global teve uma ligeira descida durante o ano seguinte. O efeito é quase instantâneo – mais rápido, aliás, do que os impactos positivos da redução das emissões –, mas Alfredo Rocha ressalva que se trata de uma solução de curto prazo, cujos “efeitos colaterais mais subtis” não conhecemos.

Primeiro teste no terreno foi cancelado

Devido aos seus potenciais impactos, que são, actualmente, desconhecidos, testar métodos de geoengenharia no mundo real é ainda um tópico sensível. Em 2021, investigadores do projecto SCoPEx, da Universidade de Harvard, planearam fazê-lo pela primeira vez em Kiruna, na Suécia – não para injectar partículas propriamente ditas, mas para testar os seus instrumentos –, e foram impedidos pela oposição pública, que incluiu um abaixo-assinado das comunidades indígenas locais e de activistas, entre os quais Greta Thunberg.

"A natureza está a fazer tudo o que pode; está a gritar connosco para recuar, para parar – e nós estamos a fazer exactamente o oposto", disse, na altura, a activista.

Face à oposição aos testes no terreno, Alfredo Rocha relembra que “uma experiência de âmbito reduzido não vai causar nenhum estrago e pode permitir verificar se não haverá efeitos problemáticos no sistema”, pelo que “não faz sentido impedir” um teste proveniente de uma universidade, feito em ambiente “controlado e razoável”. Aliás, o investigador apela ao estudo destas alternativas da geoengenharia em pequena escala, de forma a “ter a certeza de que não causam problemas inesperados”, antes de fazer avanços como os da empresa Make Sunsets.

Na visão de Alfredo Rocha, a empresa foi a grande causadora dos debates sobre o assunto por avançar demasiado rápido: “Não havendo certezas de nada e com uma start-up a ver os milhões à frente dos olhos, há receios de que isso possa levar a problemas antes que a investigação esteja realizada e concluída”, comenta.

“O problema da geoengenharia é que está a agir a jusante”

Em Portugal, a associação ambientalista Zero posiciona-se de forma semelhante aos restantes activistas, alertando para o facto de a geoengenharia interferir com sistemas químicos, físicos e biológicos de formas que nem sempre é possível avaliar.

“Nós ainda temos grandes falhas naquilo que são as previsões meteorológicas”, exemplifica Francisco Ferreira, presidente do grupo ambientalista e professor associado no departamento de Ciências e Engenharia do Ambiente da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa. “Agora imagine-se o que é nós irmos interferir fortemente na atmosfera a um nível muitíssimo maior em termos de escala, quando ainda temos tantos processos que nem sequer dominamos.”

Um retrato muito fiel do que é a interferência com a atmosfera sem dominar os processos é exactamente a destruição da camada de ozono. Apesar de se prever que esta recupere nos próximos anos, a verdade é que, nos anos 1950, a ciência não percebia que a emissão de determinados compostos estava a criar um buraco na camada de ozono – um erro que pôs em perigo a vida na Terra e cuja correcção está a demorar décadas.

“Nós sabemos o que fazer [reduzir as emissões de gases com efeito de estufa] e que funciona. Estarmos aqui a fingir que somos Deus ao contrariar a uma escala muito grande o sistema climático é um risco demasiado elevado”, completa.

Tal como o professor da Universidade de Aveiro, Francisco Ferreira reconhece o interesse de investigar as potencialidades da geoengenharia, mas questiona se é essa a forma ideal de direccionar os recursos, relembrando que a melhor maneira de tratar de um problema ambiental é a montante, cortando o mal pela raiz. “Valerá mais a pena eu ter um euro investido em garantir alternativas aos gases de efeito de estufa, ou vale mais a pena eu investir o meu euro em soluções de remedeio?”, pergunta.

Para o presidente da Zero, “o problema da geoengenharia é que está a agir a jusante”, combatendo apenas os sintomas do problema, como quem lhe aplica um penso rápido. Contudo, Alfredo Rocha defende que é possível colocar um penso rápido ao mesmo tempo que se trata a ferida, conciliando a redução das emissões com medidas que tencionam desacelerar os ponteiros do relógio.

Colher as sementes da neutralidade carbónica pode ainda demorar alguns anos, pelo que, num cenário em que os benefícios se sobrepõem aos efeitos colaterais, a geoengenharia “seria um método que iria reduzir as temperaturas a muito curto prazo e dar tempo” para implementar soluções. Seria algo temporário, que “deixaria de ser útil dentro de algumas décadas, quando as temperaturas começarem naturalmente a descer porque se reduziram as emissões”, esclarece o investigador.

“A atmosfera não tem paredes”

A experiência da Universidade de Harvard nunca chegou a acontecer por reservas das comunidades locais, que receavam os efeitos da geoengenharia, por exemplo, no clima daquela zona. Por outro lado, a injecção de alguns gramas de aerossóis na estratosfera realizada pela Make Sunsets incitou o debate sobre a regulação – quantas mais entidades poderão avançar com a geoengenharia, injectando gases na atmosfera, que se podem espalhar para as regiões vizinhas?

A verdade é que “a atmosfera não tem paredes”, alerta Francisco Ferreira. Mesmo que se demonstre que os benefícios são superiores aos malefícios, alterar quimicamente o ar que respiramos e influenciar o clima de forma artificial será sempre uma decisão que afecta toda a humanidade, independentemente do local onde isto seja feito. No final de contas, tal como aconteceu após a erupção do monte Pinatubo, as partículas espalham-se por todo o globo.

Uma situação comparável seria o facto de os países em desenvolvimento, que emitem menor quantidade de gases com efeito de estufa do que as nações mais ricas, serem também os que mais sentem os impactos do aquecimento global. Esta realidade é invocada tanto por Alfredo Rocha, como por Francisco Ferreira como um alerta para “sermos cuidadosos com aquilo que estamos a fazer” e não deixar que a história se repita.

Para que alguns países não acabem por pagar o preço de eventuais consequências da geoengenharia, Alfredo Rocha afirma ser essencial que a sua implementação seja uma decisão global, que não deve ser feita sem anos de estudo prévio. “Só a investigação é que pode permitir que os líderes globais e as populações em geral aceitem estas medidas”, conclui.