Mão Morta e Pedro Alves Sousa põem as mãos num novo tricotado
Primeiro houve um disco, Tricot. Agora, banda e saxofonista juntam-se em palco para expandir o universo criado. Quinta-feira na Culturgest, em Lisboa, sexta e sábado no gnration, em Braga.
De um lado, o de Pedro Alves Sousa, começou por acontecer somente na imaginação. Recebeu o convite, aceitou-o no imediato e imaginou-se “no meio das guitarras e de muitas camadas de distorção”, entusiasmado com a ideia de juntar o seu saxofone àquela poderosa banda rock.
Do outro lado, o dos Mão Morta, a vontade guiou a ideia. Sugeriram-lhes trabalhar com um saxofonista e o escolhido revelou-se-lhes rapidamente, Pedro Alves Sousa, figura de destaque na música exploratória e improvisada nacional recente. “Não toca sax clássico e, mesmo nas áreas em que se move, o free jazz, a música improvisada, é uma miscelânea muito grande, uma indefinição”, explica Adolfo Luxúria Canibal. Era isso que os Mão Morta, banda fulcral do rock português das últimas décadas, queriam explorar.
É o resultado desse encontro, ou melhor, a versão expandida do que resultou desse encontro que vamos ouvir em três concertos: dia 19 na Culturgest, em Lisboa (21h, 18€); dias 20 e 21 no gnration, em Braga (22h na sexta, 18h no sábado, ambos a 12€).
Primeiro nasceu um disco, Tricot, EP de três temas editado em Abril de 2022 no âmbito do projecto Esfera, impulsionado pelo radialista Henrique Amaro e pelo músico e videasta André Tentúgal e patrocinado pelos fundos do programa estatal Garantir Cultura, criado para apoiar o sector artístico durante a pandemia. Reuniu dois músicos ou bandas para residência e gravação em estúdio e edição discográfica posterior – além de Tricot, foram editados discos de JP Simões com Miramar, Sensible Soccers com Carlos Maria Trindade, Joana Gama com Angélica Salvi, Adolfo Luxúria Canibal e Haarvöl e Manel Cruz com Miguel Ramos e o próprio André Tentúgal.
Quando chegaram a estúdio, os Mão Morta tinham alguns esboços, “bases electrónicas muito bem definidas”, criadas pelo baterista Miguel Pedro, e letras que Adolfo Luxúria Canibal escreveu recorrendo “ao velho método cut-up” de William Burroughs, respigando e ordenando versos de livros escolhidos ao acaso da sua biblioteca.
Pedro Alves Sousa recorda ter sido dos Mécanosphère de Adolfo o primeiro concerto que viu na ZDB, em Lisboa (“andava muito interessado em música experimental”), e elogia os Mão Morta como “únicos tanto no panorama português como internacional, uma banda com bastante ‘quirkiness’ e que sempre me deixou intrigado”. Ilustra o raciocínio com um exemplo: "O Primavera de Destroços (2001) tem beats de jungle. Estão lentos e não são identificados como tal, mas eu andava muito por dentro [desse género musical] na altura e reconheço-os."
Álbum futuro?
Antes de ir para estúdio, tinha os esboços que Miguel Pedro lhe enviara, mas sentia-se perante o desconhecido. “Não sabia se íamos improvisar 100%, se seguiríamos as bases, se seriam solos sobre solos, mas estava excitado com a ideia de me encontrar no meio daquelas distorções altas, de entrar no coração da banda.”
O resultado foram três temas, Com as próprias tripas, Dias de abandono e A dança das raparigas. No seu ambiente soturno, denso de camadas sonoras a expandirem-se demoradamente, de abstracção instrumental a pontuar as palavras, de espectros rock a entontecerem na trepidante, misteriosa, A dança das raparigas, a música de Tricot carrega em si tanto o ambiente e as desconstruções rock dos Mão Morta como as explorações, olhos apontando ao cosmos, que Pedro Alves Sousa nos mostrou, por exemplo, no díptico Katu e Rahu, que marcou, em 2022, o arranque da sua editora, a Futuro Familiar.
Aquilo que acontecerá na Culturgest e no gnration será a expansão desse universo musical criado. Aos três temas conhecidos, juntar-se-ão "seis ou sete" por revelar. Àquilo que foi gravado nos Arda Recorders, no Porto, em processo de banda em estúdio – Pedro Alves Sousa recorda o desconforto inicial, por ser distante da sua prática habitual, ao gravar numa sala separado da banda —, juntar-se-á o encontro com o desconhecido que o palco suscita.
“Com os ensaios, mudou tudo outra vez. Estamos virados uns para os outros, a dar feedback em tempo real, a ver onde é que a música nos leva. Não faço só solos, estou concentrado em ser um instrumento acompanhante. Tem sido muito enriquecedor”, diz Pedro Alves Sousa.
Existe uma base criada previamente, existe um certo tom – “a música acaba por ser algo psicótica e as letras reflectem esse lado psicótico e a violência do mal-estar contemporâneo”, ilustra Adolfo Luxúria Canibal —, mas o que acontecerá em palco, e que poderá resultar em álbum no futuro — os concertos serão gravados com essa intenção —, será, porém, uma outra coisa. Todo um novo tricotado.