Anónimo Não é Nome de Mulher estreia-se em Famalicão para retratar a opressão feminina
Espectáculo parte de relatos de mulheres em hospícios e documenta a opressão vivida no passado e no presente. Estreia-se quinta-feira na Casa das Artes e está em cena até sábado.
O cenário está montado: duas camas frágeis, uma secretária bem organizada e quatro cadeiras perfeitamente alinhadas. O pavilhão das pacientes, o gabinete da médica e a sala de espera. As luzes apagam-se. A música começa. Somos envolvidos pelo escuro e transportados para dentro do espaço. Estamos no Hospício de Santa Teresa. A pergunta “Será que ela vem?” aparece projectada no fundo do palco. Luísa Pinto e Maria Miguel Quintelas surgem em cena e apresentam as duas primeiras personagens: Conceição e Joana, ou melhor, pacientes 543 e 1342, “porque o nome é privilégio dos normais”. Representam mulheres que foram internadas pelo companheiro e pelo pai, respectivamente: Conceição por não conseguir dar filhos ao marido e Joana por pensar demais e sobre “ideias de mudança”.
E foi justamente com uma ideia de mudança que Luísa Pinto, uma das duas actrizes de Anónimo Não é Nome de Mulher, partiu para a criação desta peça. “Em Itália, cruzou-se com o livro Malacarne, que retrata aquilo que acontecia nos hospícios da Itália fascista, onde mulheres eram encarceradas, consideradas loucas, embora na maior parte dos casos não houvesse doença mental. Eram mulheres que fugiam à imagem da mulher ideal do regime e, por isso consideradas inadequadas para a sociedade”, conta a autora do texto, Mariana Correia Pinto, também jornalista do PÚBLICO.
Muitas delas eram enviadas para hospícios por serem consideradas defeituosas se não conseguiam engravidar, ou por se tornarem um incómodo quando o marido arranjava uma amante. Mas também há relatos de encarceramento de “filhas mais rebeldes" ou "por lerem na via pública”, prossegue a autora, que foi contactada pela também dramaturga e encenadora Luísa Pinto com a missão de levarem aquelas histórias ao palco, dando visibilidade à vida “de mulheres silenciadas durante séculos”. Mas Luísa Pinto não se contentou. Foi ao Brasil e trouxe de lá realidades vividas no Hospital Colónia de Barbacena, o maior hospício brasileiro, onde morreram mais de 60 mil pessoas entre 1930 e 1980. Muitas delas, mulheres.
Com tudo isto em mãos, Mariana Correia Pinto passou dos factos ao texto e começou a escrever. Escolheu sete personagens que “mostram diferentes pontos de vista” e se organizam em dois tempos e hierarquicamente: Joana e Conceição, as duas pacientes que estão no fundo da pirâmide; a enfermeira Adriana, que está acima das pacientes, mas abaixo da Doutora Regina, aquela que, dentro do hospício, toma as decisões. Uma mulher altiva, decidida e “dona de si”, mas que se amedronta sempre que entra a Presidente da Câmara de Santa Teresa, mulher poderosa que obedece e faz obedecer “às ordens lá de cima”. A mãe de Joana aparece todos os domingos quando tenta visitar a filha. Uma mulher frágil, corcunda, “gasta pela vida”.
Ao tratar o texto, Mariana teve a sensação de que esta realidade não era exclusiva dos séculos XIX e XX: ainda se vive actualmente. “Obviamente não são os hospícios, mas ainda existe uma luta maior para mulheres do que para homens.” Assim nasce Júlia, a última personagem, nossa contemporânea, que se transforma numa hashtag ao relatar a forma como a opressão se sente na actualidade.
Sete histórias, um texto e duas actrizes. Aqui começa o trabalho de António Durães, encenador da peça, a quem foi dada a árdua missão de passar do papel para o palco. “A peça foi apresentada na mesma ordem em que o texto vinha, excepto duas ou três cenas, por isso a questão foi sempre transpor o texto para uma outra linguagem”, diz o encenador. A maior dificuldade prendeu-se com dar vida a sete personagens com apenas duas actrizes, sendo que “estão permanentemente a mudar de personagem e roupa ao longo da narrativa”. No entanto, o facto de corporizarem diferentes percursos permitiu "trabalhar arquétipos, a energia de cada personagem, gestos e postura e desenvolver o jogo de estatutos, o que ajuda a diferenciá-las”, explica por sua vez a actriz Maria Miguel Quintelas.
No vaivém vivido em palco, há uma presença constante: Cristina Bacelar. É responsável pela composição e interpretação de todas as músicas que acompanham o espectáculo. Vestida de enfermeira, permanece em cena o tempo todo, “vigilante com tudo o que está em cena”, e cria as emoções que a peça promete através dos sons que introduz, nota António Durães.
A música ecoa pela sala enquanto o palco fica vazio. As histórias foram contadas, mas ainda há muito por dizer…
Texto editado por Inês Nadais