Calor extremo ameaça sobrevivência de 40% das espécies animais no fim do século
Se as emissões de gases com efeito de estufa, que provocam o aquecimento global, forem controladas de forma efectiva, este cenário catastrófico pode ser evitado, diz estudo.
Mais de 40% de todos os animais vertebrados terrestres podem estar sujeitos aos efeitos de ondas de calor extremo em 2099, ameaçando a sobrevivência das espécies, se o aquecimento global não for controlado com a redução de emissões de gases com efeito de estufa, diz um estudo publicado nesta quarta-feira na revista Nature. Mas ao mesmo tempo que nos aponta o que pode ser o cenário mais catastrófico, este estudo mostra que há ainda tempo para salvar a biodiversidade.
“O nosso estudo salienta a importância da reduzirmos imediatamente as emissões de dióxido de carbono, para limitar de 40% para 10% o número de espécies que vão sofrer o impacto de eventos de temperaturas extremas em 2099”, disse ao PÚBLICO, por email, Gopal Murali, do Departamento de Ecologia e Biologia Evolutiva da Universidade do Arizona (EUA), que é o primeiro autor do artigo.
“As nossas projecções indicam que se o Acordo de Paris for cumprido [manter o aquecimento global baixo de dois graus Celsius, através da redução das emissões de gases com efeito de estufa] há uma grande vantagem na prevenção da exposição das espécies a extremos de temperatura”, afirma Gopal Murali.
“Concluímos que num cenário futuro de baixas emissões (aquecimento de cerca de 1,8 graus Celsius em relação aos tempos pré-Revolução Industrial), 6,1% de todas as espécies de vertebrados terrestres ficam expostos [a ondas de calor], quando nas previsões em que é considerado que se continua com um nível alto de emissões [de gases com efeito de estufa], 41% das espécies são afectadas.
Isto mostra bem a importância do aumento de cada grau, cada décima de grau, relacionando claramente a crise climática com a crise da biodiversidade. “Nós, enquanto sociedade, temos a capacidade de evitar em grande parte que milhares de espécies fiquem expostas a condições perigosas de níveis extremos de calor”, sublinha Gopal Murali.
“Foi já demonstrado que ondas de calor mais longas e mais intensas nas últimas décadas têm uma relação forte com o desaparecimento de algumas populações”, escreve a equipa na revista Nature.
Anfíbios e répteis em risco
Os cientistas consideraram vários cenários para a evolução do aquecimento global do planeta consoante as emissões de gases com efeito de estufa são mais ou menos controladas. Assim, no cenário mais extremado, em que a temperatura média da Terra é 4,4 graus mais elevada do em relação aos tempos pré-Revolução Industrial, temos os efeitos mais dramáticos, com 41% de todos os vertebrados terrestres expostos “a eventos térmicos extremos” em pelo menos 50% do seu território, em 2099 (31,1% dos mamíferos, 25,8% das aves, 55,5% dos anfíbios e 51% dos répteis).
Num cenário intermédio-alto de emissões, em que o aquecimento em 2099 pode chegar a 3,6 graus Celsius, estima-se que 28,8% dos animais terrestres sejam afectados pelas ondas de calor extremo. Num cenário intermédio (aquecimento de 2,7 graus Celsius), a percentagem reduz para 14,1%.
No cenário mais optimista de todos, que implicaria uma grande aceleração na redução das emissões de gases com efeito de estufa, em relação ao que se verifica actualmente, com um aquecimento de 1,8 graus em 2099, então "apenas" 6,1% das espécies ficarão expostos a estes fenómenos de calor extremo.
As classes de animais mais afectadas são as dos anfíbios (55,5% no cenário de altas emissões que produz mais aquecimento global, e 8,2% no cenário de menores emissões) e dos répteis (51% no primeiro caso, 9,3% na previsão mais optimista).
Para os mamíferos, as taxas são de 31,1% no pior cenário e 3,1% no melhor; nas aves, 25,8% se houver mais aquecimento global e 3,1% com menor aumento da temperatura média do planeta.
Latitudes médias mais afectadas
O estudo mostra que as espécies animais de regiões de latitudes médias serão mais afectadas do que as dos trópicos. Esta é uma das contribuições importantes do trabalho, considera Gopal Murali. “A quantidade das alterações climáticas futuras (isto é, o aumento de temperatura), quando quantificado em extremos (a temperatura máxima diária) é relativamente mais alta nas regiões de latitude média se comparamos com os trópicos. Por isso, os riscos são maiores ali”, adianta.
“Desertos, matagais, regiões subáridas, savana e pastagens são os habitats mais expostos a eventos térmicos extremos, seguidos de alguns habitats tropicais (como a bacia do Amazonas”, escrevem os cientistas na Nature.
A equipa identifica mesmo no artigo algumas zonas onde as espécies que lá vivem serão mais afectadas: “O Deserto de Mojave [Estados Unidos], as ilhas das Caraíbas, o Gran Chaco (região da América do Sul que abrange partes dos territórios da Bolívia, Argentina, Paraguai e Brasil), Noroeste do Sara e no Sahel, Iraque, Arábia Saudita, Afeganistão, Paquistão, Botswana, Leste da Namíbia, Norte da África do Sul, a maior parte do Centro e do Noroeste da Austrália, e muitas ilhas, das Caraíbas e do Pacífico”.
Nas ilhas, são sobretudo os anfíbios e répteis que correm mais riscos. O estudo identifica o Sri Lanka, o Leste de Madagáscar, Bornéu e Papuásia-Nova Guiné como algumas das ilhas onde a ameaça é maior para anfíbios e répteis, se compararmos com o que se passa com mamíferos e aves. Répteis e morcegos nativos da Nova Zelândia também enfrentam maior exposição aos efeitos das ondas de calor.
“Mostramos as áreas onde haverá maior impacto e quais os conjuntos de espécies mais vulneráveis a fenómenos de temperatura extrema. Acreditamos que estes resultados devem ser incorporados em processos de tomada de decisões de conservação da natureza ao nível nacional”, afirma Gopal Murali
O estudo desenvolvido pela equipa de Gopal Murali pode vir a ser útil como uma forma de medir a ameaça colocada à sobrevivência das espécies pelos extremos climáticos. “Na verdade, o laboratório em que fiz a investigação já está a desenvolver um índice de risco (focado em ameaças futuras) para as espécies com base neste estudo”, adianta.
Mas este estudo não basta para compreender de forma cabal os efeitos das alterações climáticas nas espécies animais. “Note-se, no entanto, que há outros fenómenos extremos em que não nos focámos, como a seca, por exemplo”, salvaguarda Gopal Murali.