Os Miseráveis, ou como romancear a realidade, mas com base na mentira!
Victor Hugo legou-nos uma obra literária épica, que parte de uma realidade conhecida de todos os franceses do século XIX, para a romancear num estilo muito próprio e construir uma narrativa que prendeu ao longo de quase dois séculos vários milhões de leitores, a que se somam muitos outros milhões de expectadores das variantes que a obra “Os Miseráveis” foi assumindo ao longo do tempo por esse mundo fora, até chegar aos dias de hoje num lugar de destaque, com inegável valor histórico e artístico. A minha modesta análise às razões deste sucesso diz-me que elas radicam na capacidade que Victor Hugo teve de pegar no que os leitores sabiam e fazê-los imaginar uma realidade alternativa, que se por acaso não existia, tinha todas as condições para ser verdadeira, apesar de parecer muito exagerada.
Num contexto mais próximo, o poeta António Aleixo, conhecido pelas suas quadras espontâneas e de um invulgar sentido filosófico, imortalizado na mesa do Café Calcinha, em Loulé, escrevia na primeira metade do Século XX: “P'ra mentira ser segura e atingir profundidade, tem que trazer à mistura qualquer coisa de verdade”.
Ora vem isto a propósito de um artigo de opinião publicado a 14 de janeiro de 2023 no jornal Público, na edição online da secção ‘Azul’, assinado por Paulo Pimenta de Castro e João Camargo, que questiona as opções de gestão do ICNF nos trabalhos desenvolvidos na Mata Nacional dos Medos (MNM), integrada na Paisagem Protegida da Arriba Fóssil da Costa da Caparica. E partindo de um trabalho público, reconhecido pela população e pelas instituições locais como uma mais-valia para a qualificação e conservação do espaço e com um resultado muito positivo, constroem uma narrativa romanceada de que o ICNF anda a facilitar negócios, lançando uma nuvem de suspeitas que vai desde os trabalhadores que implementaram as ações no terreno, passando pelos técnicos superiores que desenharam as intervenções técnicas e pelos dirigentes que as aprovaram e autorizaram, até ao próprio Secretário de Estado que tutela o ICNF e que não tem, nem teve rigorosamente nada a ver com este processo em concreto!
É para mim algo estranho que, mesmo tendo este tema sido já amplamente escrutinado e esclarecido pelo ICNF, quer junto da comunicação social através da resposta a perguntas de jornalistas, quer através da publicação de informação sobre o tema, quer ainda junto de organizações da sociedade civil, eu veja construir uma narrativa que não passa de uma efabulação, e que em nada – ou quase nada – se liga aos factos, mas que leva os leitores para uma realidade que no limite até poderia existir, só que não existe, porque se encontra suportada num conjunto de afirmações que nada têm de verdade. O que também não consigo perceber é o objetivo subjacente a este artigo de opinião, que mais não faz do que pôr em causa o direito ao bom nome e à sua reputação, de todos quantos diariamente desenvolvem a sua atividade no ICNF, nas empresas que participam nos processos de concurso, que são públicos e transparentes, e até na própria tutela governativa, e que não se revêm nem tão pouco são merecedores deste tipo de ataque soez.
E porque importa reiterar alguns dos factos que esvaziam as infundadas suspeitas lançadas pelo referido artigo, deixo-vos aqui algumas notas:
As ações de prevenção estrutural contra incêndios, de restauro, de conservação e de valorização de habitats naturais e de educação ambiental na MNM financiado pelo POSEUR, foi adjudicado através de concurso público à firma Ambiflora – Serviços de Silvicultura e Exploração Florestal Lda., estando esta vinculada à obrigatoriedade de cumprir especificações técnicas onde estão definidos os critérios para a execução das ações a implementar no projeto.
As operações de desbaste e desramação de pinheiros mansos tiveram como objetivo favorecer a melhoria das condições de crescimento para as árvores selecionadas, que ficam no povoamento, a par da redução do ensombramento do sub-bosque – a área abaixo das copas das árvores – promovendo uma maior diversidade florística. Esta intervenção integrou ainda o controlo de espécies invasoras lenhosas, a execução e manutenção da rede secundária de faixas de gestão de combustível para prevenção de incêndios e a realização de cortes sanitários, sobretudo de árvores mortas. Esta intervenção incidiu numa área de cerca de 100ha onde ocorreu um incêndio florestal em 1983, que foi posteriormente plantada com pinheiro manso entre o final de 1987 e início de 1988, com uma densidade de árvores muito elevada para garantir uma cobertura precoce do solo. Previa-se já, nessa altura, que teriam de ser efetuados desbastes à medida que as árvores se desenvolvessem.
O número de árvores que foram cortadas corresponde a uma redução de cerca de 30% a 40%, (variável de acordo com os locais), cumprindo o Plano de Gestão Florestal e justificado pela elevada densidade preexistente. Na retirada de árvores, o critério foi o de selecionar pé a pé, removendo preferencialmente as árvores mal-conformadas, dominadas, debilitadas ou enfraquecidas.
A madeira e respetivos sobrantes foram transformados em estilha e incorporado maioritariamente no solo, sendo que esta incorporação no solo dunar não pode ser suscetível de provocar alterações indesejadas, nem modificar de forma brusca e acentuada as suas características físicas e químicas. Este foi o fundamento para decidir não incorporar a totalidade do material estilhaçado.
No âmbito do projeto, não foi alienado qualquer material resultante dos trabalhos executados, tendo sido a maioria do material lenhoso sobrante estilhaçado e incorporado no solo e o remanescente encaminhado para destino autorizado (cumprindo as normas fitossanitárias aplicáveis).
A situação antes da intervenção era caracterizada por uma densidade excessiva de árvores e existência de ramagens desde a base das árvores, ou seja, combustível disponível para arder. Qualquer ocorrência de incêndio nestas condições tinha um risco elevado de evoluir muito rapidamente para um fogo de copas com uma elevada velocidade de propagação e grande severidade, dada a carga de combustível disponível.
Investiu-se ainda na inversão da situação ocorrida no passado, em que se verificava que, em vários anos, nas hastas públicas para a venda de pinha, o lote da MNM ter ficado deserto pela falta de interesse por parte do mercado.
Importa referir ainda que os trabalhos realizados na MNM foram executados de acordo com o caderno de encargos e foram tecnicamente avaliados para o objetivo de gestão estabelecido, pelo que toda e qualquer referência à falta de cuidado e desleixo na gestão desta Mata enquanto ecossistema de proteção, integrado na PPAFCC é apenas parte da narrativa falsa.
Com um lamento de quem se sente, por todas as suspeitas e acusações infundadas, lançadas em torno do ICNF, dos seus dirigentes e trabalhadores, assim como dos demais visados no artigo, deixo-vos o convite para visitarem a Mata Nacional dos Medos, a melhor forma de atestarem o trabalho feito. E continuamos, como sempre, empenhados no trabalho que fazemos, e disponíveis para o explicar com base nos factos!
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico.