Portugal trata apenas 52% dos resíduos perigosos que produz

Relatório do Tribunal de Contas Europeu faz um ponto da situação sobre o tratamento dos resíduos perigosos na UE, que estão a aumentar, apesar dos esforços para os conter.

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Remoção de 88 mil toneladas de resíduos perigosos depositados numa escombreira das minas de Sao Pedro da Cova, Gondomar, em 2014 Paulo Pimenta

Em Portugal, há uma diferença de 48% entre a quantidade produzida de resíduos perigosos e aquela que é declarada como tratada, bem acima da média europeia de 21% sobre a mesma discrepância e que é calculada num relatório do Tribunal de Contas Europeu (TCE) divulgado nesta segunda-feira. Ou seja, os dados mostram que Portugal trata apenas 52% destes resíduos, muito abaixo da média que coloca os países europeus a cuidar de 79% deste lixo perigoso que produzem.

Foram produzidos 108 quilos de resíduos perigosos per capita em Portugal em 2018 (1.114.664 toneladas de resíduos), especificou o TCE, a pedido do PÚBLICO, com base em dados do organismo de estatística europeu (Eurostat). Portugal tratou 614.263 toneladas de resíduos perigosos no seu território nesse ano, e exportou 45.464 toneladas para ser tratado noutros países.

Foi tratada uma quantidade mais reduzida de resíduos perigosos do que a que foi produzida e as causas podem ser variadas. Algumas foram identificadas no relatório do TCE divulgado esta segunda-feira. Entre elas está a forma como os resíduos são classificados, mas o tráfico ilícito de resíduos também contribui para a explicação, concluíram os auditores.

Apesar de haver legislação e esforços para conter a quantidade de resíduos perigosos produzidos na União Europeia, esta aumentou 26 % entre 2004 a 2018. “A melhor forma de limitar os resíduos perigosos é evitar a sua geração, o uso de materiais tóxicos”, comentou Eva Lindström, membro do TCE que coordenou a equipa que fez esta análise, numa conferência de imprensa online. Mas a tendência continua a ser de produção ascendente, frisou.

Actualizar legislação

Este documento não é uma auditoria, sublinhou Eva Lindström. “A publicação deste relatório no início de 2023 é uma oportunidade para que o Parlamento Europeu e a Comissão Europeia incluam os seus resultados no debate que está a decorrer para actualizar a legislação” sobre resíduos, disse Lindström, ecoando o texto do documento, disponível online. Por exemplo, a regulamentação sobre o transporte de resíduos (não perigosos), tanto dentro da UE como para países terceiros vai ser discutida esta terça-feira no plenário do Parlamento Europeu.

O relatório identifica “desafios actuais e futuros” para reduzir a quantidade de resíduos perigosos no espaço europeu. Uma delas é melhorar a classificação dos resíduos. “Não é consistente, pois nem todos os Estados-membros classificam os mesmos produtos como resíduos tóxicos”, explicou Eva Lindström.

Nem a nível internacional é coerente. Por exemplo, as baterias de iões de lítio, que são usadas hoje em muitos produtos, desde telemóveis, computadores portáteis, brinquedos e automóveis são classificadas como um resíduo perigoso nos Estados Unidos. “Mas na lista europeia de resíduos não há um código específico para as baterias de iões de lítio, só se pode usar um código geral para ‘outras baterias e acumuladores, que não é considerado perigoso”, diz o relatório. E um estudo recente estimava que, na União Europeia, o volume de baterias de iões de lítio em fim de vida pode chegar a 200 mil toneladas por ano até 2030.

“A classificação tem um grande impacto para que exista esta diferença de 21% entre os resíduos perigosos produzidos e os que são tratados na União Europeia”, afirmou Mihaela Vacarasu, outro elemento da equipa do TCE, na conferência de imprensa.

Outro desafio é garantir a rastreabilidade dos produtos, desde a geração até ao tratamento. Embora a Directiva Quadro dos Resíduos imponha aos Estados-membros da EU que garantam a rastreabilidade dos resíduos perigosos durante a sua geração, tratamento e movimentos (como exportação para outros países), não estipula como é que deve ser feita. O resultado é que se criaram sistemas com informação declarada por diferentes intervenientes económicos na cadeia que se revelaram inconsistentes e incompatíveis. Há planos para criar registos electrónicos a nível europeu, diz o relatório.

“Resíduos que sejam acumulados sem serem tratados provavelmente não aparecem nas estatísticas, o que também contribui para a diferença de 21% entre os produzidos e os tratados”, sublinhou Mihaela Vacarasu.

Problema do tráfico

Um grande problema é o tráfico ilícito de resíduos perigosos, para fugir às despesas necessárias para cumprir as medidas de segurança exigidas para o tratamento dos resíduos perigosos. Com a Taxonomia Europeia de 2020 (que cria uma lista de actividades económicas consideradas sustentáveis) a UE deixou de financiar tanto a deposição de resíduos perigosos em aterros como a sua incineração, salienta um comunicado de imprensa relativo ao relatório do TCE.

Ainda assim, em 2018, o ano mais recente para o qual existiam estatísticas para elaborar este relatório, Portugal, por exemplo, depositou em aterros 307.181 toneladas de resíduos perigosos – cerca de metade deste tipo de resíduos tratada em território português.

A União Europeia agora promove actividades de reciclagem. Só 34% dos resíduos perigosos produzidos na UE são reciclados, diz o relatório.

“Alguns resíduos são tecnicamente difíceis de reciclar em grande escala ou de uma forma que seja economicamente viável, faltam mercados para os colocar”, sublinha Eva Lindström. Isto cria uma oportunidade para o tráfico de resíduos perigosos: “É um grande negócio. Estima-se que os rendimentos anuais que gera sejam entre 1500 milhões e 1800 milhões de euros, com um risco limitado de sanções”, afirmou.

“É um problema com que a UE terá de lidar. Possivelmente com sanções suficientemente dissuasoras e harmonização da classificação e rastreabilidade”, avançou a auditora. Em 2021, a Comissão Europeia propôs a proibição de transporte de resíduos perigosos para serem deitados fora, aumentar o controlo das matérias que circulam dentro da UE e ainda reforçar sanções e multas. Também quis ainda que a recolha, transporte ou depósito ilegal de resíduos perigosos fossem considerados uma ofensa criminal, através de uma emenda na Lei da União Europeia Contra a Criminalidade Ambiental, salienta o relatório. As propostas estão a ser discutidas pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho Europeu.

As regras mais apertadas para a gestão e para garantir a segurança no tratamento dos resíduos perigosos fazem aumentar os custos. “Um estudo baseado num inquérito a refinarias em 2013 estimava que o custo mediano de toda a gestão de resíduos perigosos na Europa era de 238 euros por tonelada, enquanto os resíduos não perigosos custavam 63 euros por tonelada”, lê-se no relatório. “Isto cria o risco de tráfico de resíduos perigosos, em que as empresas não os declaram como perigosos, deitam-nos foram ilegalmente em algum lugar da UE ou exportam-nos para fora da União Europeia”, adiantam ainda os auditores do Tribunal de Contas Europeu.

Uma operação da Interpol de 2017 concluiu que os tipos de resíduos perigosos que são mais frequentemente depositados em aterros, estaleiros e pedreiras abandonados, campos agrícolas, são lixo de material de construção e demolição, resíduos da indústria automóvel (carros em fim de vida, baterias) e resíduos químicos (medicamentos com data expirada, tinta, pesticidas), relata o relatório