Na maior parte das vezes, mais do que olhar para o mensageiro, convém reflectir sobre a mensagem que anuncia. Reflectir pressupõe análise, contexto e tempo. Uma reacção condescendente, assente na lógica de que "o passado não se muda", terá sempre carência de lógica argumentativa. Porquê? Porque o passado não se muda.
Ainda assim, esse será, porventura, um dos argumentos mais usados (e dos mais falaciosos): ninguém pode propor que se mude o passado uma vez que tal só seria possível através de magia, máquinas do tempo ou outros recursos ficcionais. Porém, as coisas mudam – chama-se progresso. Não será preciso recorrer ao ridículo exemplo, na esfera da língua, de que antes escrevíamos pharmácia. Ou, no plano legislativo, que há 40 anos a homossexualidade era crime; ou, para algo mais recente, que a eutanásia está (ainda) por tipificar.
O que é que aconteceu nestes casos? Evoluímos, progredimos. A língua como corpo mutante e a legislação respondendo às exigências de uma sociedade mais livre, mais informada, mais justa. Discutir o hino nacional, apesar de parecer diferente por se tratar de um símbolo, assenta na mesma lógica.
É verdade que os exemplos acima não são símbolos nacionais (poderia mencionar a monarquia, Salazar ou a bandeira), mas não haverá dúvidas de que também constroem a identidade portuguesa – língua, direitos, liberdades e garantias estão na génese do que deveria ser a representação dos valores de uma nação.
Mais do que nos amarrarmos ao imaginário colectivo, temos de nos libertar de crenças e ideais forjados há séculos por valores agora completamente anacrónicos. Não há qualquer vergonha nisso. Nem será a capacidade de reflexão e mudança que nos tornará um povo inferior; será precisamente o inverso, a teimosia em viver no passado.
Sobre o hino nacional, o foco da discussão, sugerida por Dino d’Santiago, foi a passagem bélica Contra os canhões marchar. O músico português poderia ter escolhido outra, dada a miríade de frases que hoje não têm qualquer respaldo: de heróis do mar a (na versão alargada) Portugal não pereceu. Estes versos foram escritos como manifestação ao Ultimato de 1890, a ameaça militar do império britânico face os planos colonialistas portugueses projectados no Mapa Cor-de-rosa.
Em Construir o Inimigo, Umberto Eco revela como, invariavelmente, as identidades nacionais se afirmam pela negação do outro – e que para isso a existência de um inimigo é imprescindível. O escritor italiano não o diz como se de um trunfo se tratasse, mas, sim, de uma inevitabilidade perante a colossal vontade/necessidade das nações em unir tantas pessoas que partilhem dado território. E é precisamente sobre isso que deveríamos reflectir: considerar mudar a letra de uma música, 130 anos depois de escrita, fere a nossa identidade nacional?
Continuar a entoar frases de exaltação nacional contra britânicos, em 2023, e por algo de 1890, parece, no mínimo, embaraçoso. Mas a isto respondem-nos que não se pode apagar a história. Enfim, será que os ingleses continuam a enviar-nos ultimatos, ou "apagaram" essa história?