Em dez anos, a Murtosa perdeu um terço dos utilizadores de bicicleta
Era a campeã nacional a pedalar e continua no topo da tabela nos modos suaves de deslocação, mas novos hábitos e novos habitantes estão a reforçar utilização do carro.
A antecâmara da oficina de bicicletas de Augusto e Maria Morais já foi uma loja. Mas, fora o balcão de madeira e os calendários que atestam a passagem do tempo, a divisão está praticamente vazia. Há mais de 40 anos que abrem as portas ali no centro da Murtosa, o concelho do distrito de Aveiro que faz da bicicleta um símbolo. No entanto, a idade - ele está com 86 anos, ela com 72 – vai pesando e só vão fazendo reparações “para matar o bicho”, explica Maria, enquanto Augusto se debruça sobre uma bicicleta rosa.
Pelas paredes e tectos da oficina estão penduradas câmaras-de-ar, rodas, pneus e ferramentas de vários tipos. Se o espaço comercial não fosse seu, o dinheiro que entra não chegaria para pagar a renda, diz Maria. “Há dias em que não entra uma pessoa. Chegámos a vender quatro bicicletas para a mesma casa. Agora, as pessoas não andam tanto”, nota, numa observação que acompanha os números dos Censos 2021: numa década, a Murtosa, o concelho do distrito de Aveiro conhecido por ser o que mais faz da bicicleta um meio de transporte a nível nacional, perdeu um terço de utilizadores. Eram 893 em 2011, são 591 dez anos depois. É uma queda de 33,8%.
Em 2011, 16,9% das viagens entre casa e trabalho eram feitas de bicicleta neste município atravessado pela ria de Aveiro, uma percentagem que cai agora para 11,2%. No mesmo intervalo de tempo, também o modo pedonal perdeu terreno, enquanto o carro ganhou 532 adeptos numa população activa que se mantém relativamente estável (5231 pessoas, apenas menos 44 que em 2011).
É na análise deste último indicador que o vice-presidente da Câmara Municipal da Murtosa, Januário Cunha, encontra parte da explicação para a mudança nos padrões de deslocação. Apesar de o concelho ter um saldo natural “extremamente negativo”, há novas famílias, principalmente do Grande Porto, que o escolheram para a viver. Ora, estes “novos povoadores” continuam a trabalhar noutros municípios, muitas vezes a centenas de quilómetros. Assim, o carro torna-se o meio predilecto.
“O mal é as pessoas trabalharem fora do concelho. Aqui estamos um pouco isolados”, refere o dono da Ciclo Pedal, Pedro Tavares, que há 15 anos tem um negócio de bicicletas no centro da Murtosa. Também ele nota um decréscimo de utilizadores quotidianos, apesar de registar o interesse nas bicicletas para prática desportiva, principalmente nos mais novos.
Esses registam quilómetros através de aplicações e competem, a ver quem percorre maiores distâncias. Para ter uma noção do uso comum, fez uma experiência há cerca de quatro anos: instalou conta-quilómetros nas bicicletas de duas das suas clientes, uma de 72 anos e outra de 59, que fazem apenas viagens até à feira, à loja ou ao terreno onde têm as suas culturas. No espaço de um mês, acumularam mais quilómetros que os jovens que competem entre si, assegura.
Mudam-se os hábitos
Quando não vem de casa, o incentivo ao uso da bicicleta começa na escola, e a Padre António Morais da Fonseca tem o estacionamento composto. São veículos de alunos, mas também de funcionários, como Cecília Cirne, que a usa há 26 anos para fazer 10 minutos até chegar ali, e de professores, como Nuno Gonçalves, que vive em Ovar, a cerca de 20 quilómetros. Ainda assim, usa a bicicleta duas ou três vezes por semana para ir para a Murtosa, conta, num percurso de mais de uma hora em cada sentido.
Mas Cecília Cirne comenta que se tem notado um aumento de carros nas estradas do concelho. Na análise que faz dos números, Januário Cunha coloca também em cima da mesa a altura em que as respostas dos Censos foram recolhidas (e o potencial efeito pandémico), assim como a forma como é feita a pergunta. Aponta ainda que nem as pessoas que trabalham em casa nem as reformadas são tidas em conta neste levantamento.
Maria Morais ensaia uma outra parte da explicação: em termos históricos, uma grande faixa da população encontrou emprego nas fábricas do vizinho concelho de Estarreja. Se antigamente os operários iam de bicicleta, agora fazem os cerca de oito quilómetros de carro ou de motorizada. Quem está reformado ainda mantém vivo o hábito de pedalar, mas também isso se vai esbatendo. “Uns estão mancos, outros estão coxos”, atira Maria Morais, sobre os mais velhos. “E os mais novos vão de carro.”
A história de Daniel Lopes, reformado da construção civil que encontramos de passagem pela oficina dos Morais, ajuda a acompanhar parte da mudança de hábitos em Portugal: hoje com 72 anos, foi sempre para o trabalho de bicicleta até que, aos 43 anos, tirou a carta de condução. Era o início dos anos 1990 e a melhoria do poder de compra permitia a aquisição de um automóvel, numa tendência de motorização crescente que foi acompanhada pelo país nas décadas seguintes. Até hoje.