Sem glúten e sem lacticínios, a doçaria tradicional de Rute Cristóvão não ofende

A ideia não é reinterpretar o receituário tradicional, mas torná-lo acessível a quem não tolera a farinha de trigo e lacticínios. Toda a gente tem direito a uma sericaia ou ao genial pão de rala.

GBV Guillermo Vidal - 03 Janeiro 2023 - PORTUGAL, Lisboa - Rute Cristovao, pasteleira reinventa o receituario tradicional e faz doces tradicionais para celiacos, pessoas intolerantes ao gluten e lacticinios, fotografada na Mercearia Criativa - serie, Guardiaes do sabor
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Rute Cristóvão: “Cada doce é um doce" Guillermo Vidal
GBV Guillermo Vidal - 03 Janeiro 2023 - PORTUGAL, Lisboa - Rute Cristovao, pasteleira reinventa o receituario tradicional e faz doces tradicionais para celiacos, pessoas intolerantes ao gluten e lacticinios, fotografada na Mercearia Criativa - na foto, pao de rala, fios de ovos - serie, Guardiaes do sabor
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Rute Cristóvão reinventa o receituário tradicional com doces para celíacos, pessoas intolerantes ao glúten e lacticínios Guillermo Vidal

Sim, é possível que o leitor pense que perdemos o juízo por recomendarmos, depois de tantas festas, os doces de Rute Cristóvão, quando o razoável seria, depois de semanas de excessos, uma desintoxicante de sopa de feijão com couve penca porque é agora que elas estão bem boas (o frio torna-as doces e tenras). Percebemos. Mas tudo tem uma explicação, que neste caso mete a gulodice e a saúde daqueles que não podem consumir glúten ou lacticínios. Também são filhos de Deus. E, de qualquer maneira, o Carnaval é daqui a dias e a Páscoa é logo a seguir.

Como se estima que um por cento da população europeia tenha a doença celíaca, o mais natural é conhecermos amigos que tenham esta patologia que cria limitações complexas do ponto de vista alimentar, em particular quando se come fora de casa. Num pensamento rápido, quem não tem a doença pensa que os maiores obstáculos são apenas o pão, as massas, pizzas, cerveja e tudo o que tenha a ver com trigo, centeio, cevada, malte e por aí fora. Talvez por não ser um bem de primeira necessidade, os bolos e demais doçaria feita com farinha de trigo nunca são assunto de conversa, a não ser, claro está, entre os celíacos gulosos. Só quem passa por elas é que sabe.

É certo que já existe no mercado pastelaria variada para celíacos e para gente intolerante à lactose, mas desconhecíamos a pasteleira que resolveu adaptar as grandes criações da doçaria portuguesa (conventual ou não) para gente que não pode ingerir glúten ou lacticínios. Com a marca Mó d’Alecrim, Rute Cristóvão prepara coisas como pão de rala, pão-de-ló, sericaia, toucinho-do-céu, papos de anjo, encharcada, dom rodrigos, castanhas de ovos, bolo de mel e azeite, pudim de castanha ou broas castelares, além de trabalhar criações próprias, algumas sem açúcar.

Rute é uma alentejana de Vendas Novas, estudou e trabalhou em Portugal e no estrangeiro, foi professora em escolas de hotelaria e hoje é formadora num grande grupo de restauração. Não sabe bem por que razão foi parar ao mundo dos doces. “Ninguém em minha casa dava particular relevo ao assunto. Faziam-se uns bolos como noutra casa qualquer e nada mais.” Mas guarda com carinho uns poemas mimosos e com rima acertada da avó Joaquina, que a incentivava permanentemente quando estudava pastelaria em Évora para ser a melhor pasteleira do mundo. Não fazia a coisa por menos. E se ninguém sabe o que é isso da melhor pasteleira do mundo, a avó poderia, hoje, fazer mais uns versos para registar que a neta acabou por trabalhar no Celler de Can Roca, esse sim, durante alguns anos, o melhor restaurante do mundo. Isso ninguém lhe tira. Isso e o facto de o genial Jordi Roca a ter incentivado para estudar pastelaria em Barcelona - “talvez o momento mais importante da minha vida em termos de formação”.

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Pão de rala Guillermo Vidal

A criação da Mó d'Alecrim é marcada pelas consequências do encerramento da restauração durante a pandemia e, umas semanas antes do primeiro confinamento, pelo diagnóstico da doença celíaca. “Se a necessidade me obrigou a trabalhar a pastelaria por conta própria e em casa - era coisa que dominava -, a limitação do glúten e também dos lacticínios foi o gancho certo para o negócio. Há muita gente que, mais do que comer um doce ou um bolo, quer voltar a sentir o sabor das receitas clássicas”, refere Rute.

E esse processo implica grandes alterações nas receitas? “Cada doce é um doce, uns têm mais exigência em termos de farinha e lácteos, e outros não. E até há casos, como o pão de rala, que só leva um pouco de farinha. A questão mais crítica é a gestão dos amidos, que são determinantes para a elasticidade das massas.” E que farinhas alternativas são mais usadas? “A mais frequente é a farinha de trigo sarraceno – que na realidade nem tem nada a ver com trigo , mas podem ser usadas farinhas de arroz, de milho, de grão-de-bico, de mandioca e outras.”

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Pão de rala Guillermo Vidal

Claro está que quando se entra neste campeonato, o desejo de quem cria é sempre reduzir ou substituir determinados produtos. Donde, azeite em vez de manteiga, bebidas vegetais em vez de leite e, por vezes, açúcar mascavado em vez de açúcar refinado.

Agora, a prova dos nove com dois doces (se calhar não foi a melhor escolha porque nos fazem tremer de desejo, mas enfim). O pão de rala apresentou-se o mais canónico possível, revelando com intensidade o sabor da amêndoa e daqueles fios glicerados e delicados da abóbora gila, à mistura com os fios de ovos. Se na receita original a farinha de trigo até aparece em quantidades ínfimas, aqui é substituída por trigo-sarraceno. Não se dá por nada. Quanto ao pão-de-ló (na versão centro/sulista que é carregar no creme de ovos) aqui sim, sentem-se diferenças. Por causa da farinha? Não, por causa do açúcar mascavado. Não só o creme de cobertura é mais escuro como tem um toque caramelizado. Ainda assim, depois de três colheradas, repartimos o bolo em pedaços para os entregar de imediato aos vizinhos porque se Deus não acudisse entrávamos em hiperglicemia. Repartir doces (e por vezes salgados) tem dado muito jeito aqui no prédio.

Rute Cristóvão Guillermo Vidal
Pão de rala Guillermo Vidal
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Rute Cristóvão Guillermo Vidal
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A pasteleira resolveu adaptar as grandes criações da doçaria portuguesa Guillermo Vidal

No mais, Rute Cristóvão também faz pão sem glúten, com farinhas diversas e moídas em casa, em forma de baguete e com cores muito malucas, tudo passível de ser encomendado via Instagram (@mo_d_alecrim) ou, em Lisboa, na Mercearia Criativa, que anda sempre a descobrir produtos ora inovadores ora representantes das nossas memórias gastronómicas.

Esta rubrica é sobre quem faz o favor de guardar os sabores matriciais da nossa história alimentar. Nalgumas preparações, substituir a farinha de trigo ou lácteos por outros produtos pode alterar ligeiramente o sabor original, mas se isso é a condição para que muita gente possa comer um bolo ou pudim de memória, a única coisa que podemos fazer é aplaudir o trabalho de Rute Cristóvão, que em nada compromete o nosso património gastronómico. Isso é serviço público. Saboroso e saudável.

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Com a marca Mó d’Alecrim, Rute Cristóvão prepara coisas como pão de rala, pão-de-ló, sericaia, toucinho-do-céu Guillermo Vidal

Os preços dos doces podem ser consultados no Instagram da Mó d'Alecrim.

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