Chiquitita, dos Abba, continua a proteger as mulheres 40 anos depois

Em 1979, os Abba cederam os direitos autorais de Chiquitita à Unicef. Queriam que fosse usada para apoiar jovens mulheres e crianças. Quatro décadas depois, continua a fazê-lo.

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Os Abba compuseram Chiquitita para o seu sexto álbum, Voulez-Vous Reuters/TT NEWS AGENCY

Seria só mais uma canção dos Abba. Relevante o suficiente para ser escolhida como primeiro single do álbum Voulez-Vous, editado em 1979, mas não mais que isso. Ou melhor, tudo isso, dado que falamos dos Abba. Chiquitita subiu ao top de inúmeros países, vendeu milhões de cópias, continua hoje a ser uma das canções mais ouvidas do quarteto sueco, especialmente nas Américas de língua espanhola. São precisamente as raparigas carenciadas dessa zona do planeta que mais têm beneficiado com o seu prolongado sucesso. Os Abba cederam os direitos autorais de Chiquitita à Unicef e transformaram-na naquela que será a mais lucrativa e duradoura canção de beneficência da história.

Interpretada pela banda no Music For Unicef Concert, evento emitido para todo o mundo a 9 de Janeiro de 1979, a partir da Assembleia Geral das Nações Unidas, e no qual participaram, além dos Abba, os Bee Gees, Rita Coolidge, Kris Kristofferson, Rod Stewart, Donna Summer, Elton John ou Earth Wind & Fire, Chiquitita, então o single mais recente dos suecos, seria oferecida à Unicef.

Todos os participantes acordaram ceder à instituição royalties de uma das suas canções, porém, nem todos agiram da mesma forma. A maior parte dos participantes acordou uma cedência de direitos autorais por um período limitado de tempo. Não foi esse o caso dos Bee Gees. Os instigadores do Music For Unicef Concert compuseram Too much heaven propositadamente para a ocasião e cederam os direitos da música e sua reprodução futura sem condições – no início deste século, os valores acumulados já ascendiam a cerca de sete milhões de euros.

Os Abba cederam inicialmente 50% dos direitos de Chiquitita – em 2014, a banda cedeu à Unicef os restantes 50% —, mas com um objectivo específico. A canção que teve como títulos provisórios Chiquitita Angelina ou In the arms of Rosalita, e letra igualmente diferente da que conhecemos – em In the arms of Rosalita havia um Pedro, com seu sombrero, como responsável pela dor da protagonista —, tornou-se um dos maiores sucessos dos Abba na América Latina após ter sido gravada em espanhol, ainda em 1979, e os Abba desejavam usá-la para apoiar as crianças e adolescentes do sexo feminino.

O melhor legado

“Julgo que aquilo que de mais urgente deve ser feito neste planeta é o empoderamento de jovens mulheres e raparigas. Isso iria mudar o mundo”, defende Björn Ulvaeus, um dos ABBA, à BBC News. “É tão triste existirem culturas e religiões à volta do mundo que não oferecem oportunidades iguais às raparigas. Portanto, desde muito cedo dissemos à Unicef que era aí que queríamos ver o nosso dinheiro investido”.

As declarações surgem no contexto de uma reportagem da BBC News, publicada no penúltimo dia de 2022, que aborda o trabalho da ONG guatemalteca Asociacion de Amigos del Desarrollo y la Paz (AADP) numa das regiões mais pobres da Guatemala, Alta Verapaz. A ONG oferece workshops dedicados a saúde, educação sexual e amor-próprio, financiados com os royalties de Chiquitita, direccionados às jovens e crianças da região, tentando ajudá-las a ultrapassar as barreiras de um contexto social fortemente misógino e a sobreviver ao trauma da violência doméstica e da agressão sexual.

Numa região maioritariamente de etnia maia, a população feminina luta para quebrar uma visão tradicional vista como profundamente machista. “Aqui produz-se cardamomo, café, cacau, milho e feijão, e a força física do homem é muito valorizada, enquanto a mulher é minimizada e restringida à casa”, relata Leslie Pau Soto, psicóloga infantil da AADP, descrevendo uma realidade em que as raparigas são desincentivadas de estudar, sofrendo estigmatização social caso decidam fazê-lo, e em que a gravidez adolescente e infantil é tragicamente banal.

A violência sexual é um problema a que, acusam interlocutores locais na reportagem, quer o governo guatemalteco, quer o sistema judicial do país, fecham os olhos – segundo a BBC News, apenas dois em cada cem casos de violação resultam em processo judicial ou condenação.

A AADP produz programas em língua maia para difusão em rádios locais, a forma mais eficaz de chegar a uma população que, nas regiões mais montanhosas, não tem acesso a rede de internet, e desenvolve trabalho no terreno, apoiando mulheres, jovens e crianças. “Os homens têm-nos tratado muito mal. Mas as coisas estão a mudar”, diz Doña Lidia, professora e mãe de uma menina de oito anos vítima de abuso sexual. “Eles têm de nos respeitar. Sabemos que também temos direitos”.

Na pequena localidade de Santa Catalina La Tinta, os repórteres da BBC encontram um grupo de raparigas indígenas. Cantam uma canção em Q’eqchi’, a língua nativa maia. “Nunca nos meus sonhos mais loucos imaginei que fosse tão duradoura e que trouxesse tanto dinheiro. É o melhor legado que alguém pode desejar”, dizia na Suécia Björn Ulvaeus. Falava de Chiquitita. É a canção que as raparigas, 44 anos depois da sua edição, cantam na sua língua num pequeno salão da Guatemala.

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