O lado sombrio da vida de Pelé
Nem tudo foi maravilhoso na vida do “Rei” e as polémicas foram muitas, relacionadas com o futebol mas não só.
Como qualquer grande estrela mundial, Pelé move paixões. Adorado por muitos, odiado por outros tantos, o brasileiro nem no próprio país consegue ser consensual.
O artista Tom Jobim chegou a dizer que “o povo odeia o Pelé porque ele deu certo e ama o Garrincha porque morreu na miséria. O Brasil precisa de aprender a amar o Pelé”.
O motivo deste “ódio” tem várias “camadas”.
A primeira é que Pelé não nasceu dotado do dom da oratória. Já depois do final da carreira, nunca se inibiu de falar dos mais variados assuntos, mas cometeu, com frequência, gaffes próprias de quem “falava” melhor com os pés numa bola de futebol.
Romário chegou a dizer que “Pelé calado é um poeta”, frase que se tornou recorrente no Brasil sempre que Pelé se aventurou a abordar assuntos como política, cultura ou até mesmo temas sensíveis do futebol.
Um dos episódios mais marcantes foi antes da Taça das Confederações, em 2013, quando Pelé aconselhou o Brasil “a esquecer a confusão que está a acontecer no país e pensar que a selecção brasileira é o país e é o nosso sangue”. A frase não foi bem recebida pelo povo, que tinha problemas graves por que lutar.
Pouca voz contra o racismo
Mas, como qualquer génio, Pelé foi, em bom português, "preso por ter cão e preso por não ter" – quando optava por não opinar, o povo caía-lhe em cima também.
O brasileiro, de raça negra, sempre se mostrou pouco preocupado em ser um rosto da luta contra o racismo, algo que indignou muitos dos mais apaixonados lutadores da causa.
Pelé sempre optou pelo silêncio, até por ter nascido num período da história no qual o silêncio era a prática possível.
O brasileiro chegou a relativizar o racismo, apontando-o como algo que viveu com naturalidade. “Acho que hoje não mudou muito [o racismo no futebol]. A única coisa que deve ter mudado acho que foi a imprensa. Um jogador falava uma besteira para outro, era para a gente. Quando ia jogar na Europa, acontecia muitas vezes. Jogando aqui contra argentinos, chamavam a gente de macaco, de chimpanzé e crioulos. Veja se saiu algum escândalo.”
Pelé acreditava que havia democracia racial no Brasil e afastou-se da tal posição de guerrilha que tantos lhe pediam.
Em 1978, o próprio Pelé viria a explicar a opção ao Globo: “Muitas vezes comentam que não pego a bandeira para atacar o racismo ou tomar posição ante a situação política do país (...). Sinto-me bem melhor e acho que sou mais útil assim, pois posso fazer qualquer coisa pelas duas partes. Sendo radical, começa-se a ser tolhido por um certo grupo de pessoas, o que pode reduzir meu raio de acção e minha maneira de pensar.”
Para a jornalista Angélica Basthi, autora do livro Pelé: uma estrela negra em campos verdes, “ainda permanece essa imagem, em que ele próprio investiu, do Pelé dos anos 70, que nunca quis ser vinculado à questão racial”.
A filha não reconhecida
Com Pelé, vieram ainda as polémicas ligações à FIFA. O ex-jogador acabou por ter, em determinada fase da vida, uma relação estreita com a FIFA de Joseph Blatter, apoiando até a reeleição do dirigente que acabou por estar envolvido em escândalos de corrupção como presidente do organismo máximo do futebol mundial.
Depois da renúncia de Blatter, “enterrado” em teias judiciais, Pelé escudou-se numa frase que também ela acabou por ser malvista.
"A minha opinião é a de um jogador. Eu quero ver o futebol unindo as pessoas, parando guerras. É isso o que o futebol faz. O que a corrupção faz não é problema meu”, disparou.
Também as polémicas com a filha – que sempre recusou reconhecer – e as sucessivas prisões do filho – do tráfico de droga à lavagem de dinheiro – acabaram por rodear o astro brasileiro de uma aura enevoada.
Angélica Basthi apontou mesmo ao portal UOL, em 2020, por altura do 80.º aniversário de Pelé, que “ninguém conseguiu entender bem por que motivo o Pelé demorou tanto a reconhecer essa filha”. “E ele teve outra filha também fora do casamento, a Flávia, que ele reconheceu. Qual foi sua grande dificuldade? Achou que a moça queria dar um golpe? Mas, depois, com tantas evidências de que ela era filha dele, por que motivo ele se recusou? Isso foi muito polémico e muito discutido na época. Ficou uma marca na sua trajectória”, explicou.
Os 1000 golos
Em matérias futebolísticas, Pelé teve contra si três “nevoeiros” densos.
Primeiro, os cartões vermelhos. O brasileiro somou, pelo Santos, 13 expulsões, um número consideravelmente elevado, sobretudo para um jogador de ataque.
Depois, Pelé acabou por ter vários dedos apontados no Brasil pela decisão de não participar no Mundial 1974.
Depois do sucesso em 1970, com aquela que é, para muitos, a melhor selecção de sempre, o brasileiro, então com 30 anos, abdicou do Mundial seguinte e o campeão Brasil… ficou em quarto lugar.
Na altura, foi apontado que o brasileiro receava que um fracasso em 1974 prejudicasse a imagem que tinha construído. Muita imprensa brasileira traçou Pelé como mercenário e culpou o jogador pela derrota no Mundial.
Por fim, Pelé nem quando marcava golos escapava às polémicas. Desta feita, a “polémica dos 1000”, número de golos que o próprio diz ter superado.
Muitos consideram que a contagem não só foi desprovida de rigor como tem incluído um número considerável de golos em jogos particulares com equipas não profissionais e em provas não oficiais. É este o argumento de quem desdenha os 1284 golos que Pelé garante ter marcado como futebolista.
A FIFA, por outro lado, dá-lhe apenas 757. Diga o que disser Pelé, é esse o número que conta.