Património material ou imaterial: a uma só voz
É tempo de unir esforços, como se realmente fosse um ‘esforço de guerra’: do monumento ao teatro, do museu à dança, da música ao aqueduto, das pinturas rupestres ao cinema.
Não raras vezes, ao longo dos anos – e ainda hoje – a questão da defesa do nosso património cultural parece sofrer uma clivagem entre o edificado e o imaterial. Houve momentos e radicalismos, muitas vezes identificados (erradamente) como causas entre direita e esquerda políticas em que o edificado seria o único a merecer os dinheiros de Estado para a sua conservação (à direita) e a contraposição (à esquerda) de que o que interessaria sobretudo seria garantir a criação e o património imaterial, como a música, o teatro, a dança… Não digo sequer que isto seja sobreponível à realidade, mas foi, sem dúvida, uma percepção, que, felizmente, com os anos se vai libertando dessa falsa ‘guerra’ ideológico-partidária. Talvez fruto de exageros, que se foram atenuando. Mas ainda muito presente. Recordo, sem citar o nome, um actor ter dito na televisão, a propósito desta (falsa) dicotomia, em relação aos apoios do Ministério da Cultura que se “deveria escolher entre o passado (o património edificado) ou olhar o futuro (a criação imaterial)”. Nada de mais despropositado, mesmo dando o desconto do contexto em que foi. Ou talvez eu tenha entendido mal e se estivesse a referir, “pior ainda a emenda do que o soneto”, aos grupos históricos e aos jovens criadores.
No seio da criação imaterial, há quem olhe com desconfiança as criações emergentes e a assumpção de cânones completamente diversos sob os quais foi ‘ensinada’ a minha geração. Sei, é verdade, que muitas vezes a evocação de desconformidade com esses ‘cânones’ não representa uma verdadeira evolução, mas a total ausência de trabalho incorporado e saber técnico-artístico. Mas isso sempre aconteceu – e acontece – em qualquer geração e, consequentemente em criadores mais ‘antigos’ idem. Do mesmo modo que de um lado e outro há quem, com ou sem rupturas, esteja atento olhando do futuro para o passado, como do passado para o futuro. São os que melhor se ajustam, no sentido positivo, ao presente. De resto é na pluralidade, também assim expressa, que se garante uma sã renovação do tecido artístico e se preserva o que, vindo de trás, traz e mantém a continuidade histórica da própria arte e dela ser expressão de humanidade. Não há futuro sem passado, nem o passado conta se não for um continuum para o futuro: o presente é apenas isso, fugaz. O que no momento anterior era futuro, transforma-se em passado no momento seguinte. Os jovens emergentes, em vingando, serão históricos, os históricos atentos sabem renovar-se.
Mas centremo-nos agora no património do “passado” (edificado) e o do “presente ou futuro” (o imaterial). Desde logo esbarramos na infirmação desta divisão na cultura. A Comuna ou a Companhia Nacional de Bailado, A Barraca ou a Seiva Trupe ou o São Carlos – e muitos etc. – são apenas património imaterial? Todo o historial que produziram, o próprio material físico que construíram (cenários, adereços, guarda-roupa) não são peças de um património ‘edificado’? Não se torna isso patente na própria existência de um Museu Nacional do Teatro e da Dança, que os recolhe, ‘memorializa’ e os devolve a todo o presente que se vai sucedendo? E ao contrário? Uma visita aos Jerónimos, ao Templo de Diana, à Sé do Porto, ao Grão Vasco – e muitos outros etc. também – não se inserem na marca imaterial de quem os visita, como elemento agregador e criador do imaginário do que somos? Não se constituem bases do alfabeto cultural para descodificar um objecto artístico imaterial? Não são ‘pedras’ do nosso passado comum que é argamassa, mesmo que no plano do inconsciente colectivo, material da criação actual e futura? Mais, talvez como parte de expressão disso: não há tendencialmente cada vez mais fusões em fazer acontecer actos performativos nesses espaços, bastas vezes em íntima ligação ao historial do próprio edifício ou de acontecimentos na sua época?
Esta separação do património em material e imaterial, do ponto de vista ‘taxinómico’, de organização administrativa, fará algum sentido, sim, mas o que não faz sentido é pensar que os investimentos e atenção para com ambos não sejam complementares. Daí advém a necessidade de fazer pontes – e os criadores do dito ‘imaterial’ ou os responsáveis (muitas vezes também criativos) do material – compreenderem isto. Uns e outos devem olhar para lá do seu sector específico. Está tudo em cacos, que importa salvar, recolher, reconstruir. A situação caótica de degradação a que chegou o nosso património edificado e está em linha com as ruínas que vão, ano após ano, provocando no património imaterial com decisões arbitrárias e sem consistência, sem visão programática sustentada e sustentável. Em nome da falta de verba liquidam-se grupos de criadores com dezenas de anos de Serviço Público e deixam-se ruir pedras de monumentos com centenas de anos que contam a nossa História, deixa-se em perigo pinturas seculares, transforma-se em hotéis ou bancos símbolos da arquitectura de uma cidade e de um tempo. Isto, obviamente, não é comparável em gravidade sequer a um centésimo de milionésimo da explosão dos Budas pelos talibãs, mas no processo mental a diferença é de escala.
Quando perceberão os estadistas, ou candidatos a sê-lo, que a cultura é um bem precioso como água espiritual para bebermos, lavar, regar? Num Mundo Globalizado – e como os próprios cultores dele também o consideram – o particular, o local, ganha uma enorme importância para evitar uma massificação acriteriosa. Nem mais, nem menos do que o ‘combate’ ao perigo económico, na agricultura, da monocultura. Mais: tal como a garantia da biodiversidade, também a diversidade cultural, na potenciação do que é nacional, local até, representa um bem mundial, uma ‘mais-valia’, como agora se diz. Preservar a nossa identidade é preservar as nossas ‘fronteiras’ do ser colectivo chamado Portugal, compreendendo-o num movimento continuado, diferenciador, mas não desprezando o que já era, antes acolhendo o mais que vem em consonância. As artes e a cultura, assim compreendidas, cimentam e sedimentam a nossa identidade, mesmo no seu cosmopolitismo. Este é um processo que não se pode cingir às percentagens. Nem mesmo o de uma revindicação numérica, sem substância, de 1% do orçamento de Estado para a tutela da Cultura. 1, 2 ou 3 importa saber como e para quê. A cultura da nossa identidade colectiva inserida no resto do Mundo e de braços abertos para ele: para o acolher, sim, para se mostrar, também.
É tempo de unir esforços, como se realmente fosse um ‘esforço de guerra’: do monumento ao teatro, do museu à dança, da música ao aqueduto, das pinturas rupestres ao cinema. Contra a incúria, certas jactâncias, a indiferença, a incompreensão, a frieza dos números – sem sequer se compreender que, indirectamente, eles fazem crescer o próprio PIB, criam emprego directo e indirecto, ajudam a sustentar empresas terceiras e habilitam os povos para um índice de produtividade e eficiência maior no futuro. E isso tanto passa por ver uma peça no Novo Grupo, como visitar o Castelo de Guimarães. Para já, exija-se, perante a calamidade, no material e no imaterial, uma ‘injecção de capitais’ imediata para acorrer à calamidade. Calamidade, sim: dos objectos e dos sujeitos. No mínimo ‘aproveitar’ tudo o que se reconhece meritório, mas os cofres se fecham.
E se a cultura não dispensa dinheiro para se realizar, é bom lembrar que ela é o ‘dinheiro’ do espírito. Sem isso não se pode viver. A cultura está em todo o lado e a ausência dela em todo o lado faz mossa: material e imaterial. Unamo-nos em sua defesa, em defesa do património que é: material ou imaterial. Por ele é que há Portugal: de ontem, hoje e amanhã.