Um manifesto assinado por dezenas de personalidades de Portugal e do Brasil quer pôr a questão do clima no centro do tratado de livre comércio entre o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a União Europeia (UE). O manifesto é apresentado nesta quarta-feira, a quatro dias da tomada de posse de Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), como novo Presidente do Brasil.
“Com a eleição de Lula da Silva e o regresso do Brasil ao seu lugar indispensável na política internacional criaram-se as condições favoráveis para se poder construir uma nova estratégia ao combate às alterações climáticas”, lê-se no comunicado sobre o manifesto.
O tratado de livre comércio entre a UE e o Mercosul (um bloco económico fundado pela Argentina, o Brasil, o Paraguai e o Uruguai em 1991), alvo de conversações ao longo de 20 anos, atingiu uma conclusão em 2019, quando se alcançou um compromisso político. Mas no ano seguinte o Presidente francês, Emmanuel Macron, rejeitou o acordo, após um estudo mostrar haver o risco de um aumento de desflorestamento com a sua entrada em vigor. A recusa deu-se durante a presidência de Jair Bolsonaro, quando os incêndios e o desmatamento da Amazónia chegaram a níveis que não se viam há mais de uma década.
Durante a 27.ª Cimeira do Clima das Nações Unidas, no Egipto, Lula da Silva prometeu dar prioridade à protecção da floresta amazónica e de outros biomas na sua presidência. Já em relação ao Mercosul, o líder do PT tinha anunciado, ainda em Julho, melhorar o acordo com a UE, se fosse eleito. “A eleição de Lula da Silva abre as portas para fazer algo diferente e com um efeito de cascata. É preciso aproveitar este momento”, diz ao PÚBLICO Paulo Magalhães, jurista, presidente da organização Casa Comum da Humanidade (CCH) e investigador da Universidade do Porto, que organizou o manifesto.
A ideia surgiu de Álvaro Vasconcelos, fundador do Fórum Demos, e de Maria João Rodrigues, presidente da Fundação Europeia de Estudos Progressistas, durante a conferência de Outubro Clima Património da Humanidade, organizada pela CCH, que reuniu representantes de vários países de língua portuguesa.
O grande objectivo é tornar o “clima estável” um bem comum para a humanidade do ponto de vista do direito. O que é o clima estável? “É uma manifestação visível de um sistema terrestre em bom estado”, responde Paulo Magalhães. Foi um clima estável que permitiu o desenvolvimento das sociedades humanas nos últimos 11.000 anos e que está em risco com as alterações climáticas.
O jurista argumenta que ecossistemas como a Amazónia têm uma contribuição enorme para a manutenção do clima da Terra, que traz benefícios para todos. Mas como estes ecossistemas não têm uma existência legal enquanto provedores de um clima estável, que fornece um bem comum, não é possível atribuir-lhes um valor económico. O resultado é que a madeira que se produz a partir do desmatamento da Amazónia é muito mais valiosa do que a floresta que se extingue.
27 cimeiras sem garantir protecção do clima
“O trabalho dos ecossistemas desaparece num vazio jurídico-legal”, afirma Paulo Magalhães, que investiga a questão há anos. Um dos resultados é que ao longo de 27 cimeiras do clima ainda não se garantiu a protecção do clima da Terra, adianta o especialista. “Esta é a maior falha da história do mercado.”
A Lei de Bases do Clima, promulgada em Dezembro de 2021, é a primeira lei do mundo em que se defende “o reconhecimento pela Organização das Nações Unidas do clima estável como Património Comum da Humanidade”, lê-se no 15.º artigo da lei. O manifesto agora divulgado deseja expandir esta vontade.
“A UE e o Brasil deviam fazer do objectivo de cumprir o Acordo de Paris uma condicionalidade dos seus acordos bilaterais”, lê-se no primeiro dos quatro pontos apresentados pelo manifesto, que propõe a elaboração de um anexo sobre a questão do ambiente para ser ratificado juntamente com o acordo, tornando “vinculativa a sua componente ambiental”.
No entanto, o documento apela a “uma nova estratégia para cumprir” o Acordo de Paris, que tem como objectivo manter a subida da temperatura média da Terra abaixo do patamar dos 1,5 graus Celsius. “É preciso reconhecer os limites de uma estratégia que se limita a neutralizar emissões, mantendo o mesmo modelo económico”, lê-se.
Em vez disso, o “objectivo prioritário deve ser o reconhecimento do clima estável como Património Comum das Humanidade, através de um tratado internacional envolvendo todos os membros das Nações Unidas”, defende-se no manifesto. Deste modo, seria possível ter em conta os benefícios dos ecossistemas como a Amazónia e “construir uma economia de restauro e manutenção do bem comum”.
Para Paulo Magalhães, se esta mudança for introduzida no acordo do Mercosul com a UE, será possível caminhar em direcção a uma mudança global: “São dois blocos que têm grande importância em termos internacionais. Se estiverem unidos em relação a isto, têm um peso enorme.”
Além de Magalhães e dos dois ideólogos do projecto, são signatários do manifesto personalidades como o deputado Alexandre Quintanilha, a activista Andreia Galvão, da Greve Climática Estudantil, o professor e investigador brasileiro Carlos Nobre, da Universidade de São Paulo, Filipe Duarte Santos, professor da Universidade de Lisboa, Guilherme de Oliveira Martins, administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian, Helena Freitas, da Universidade de Coimbra; a escritora Lídia Jorge; o escritor brasileiro Milton Hatoum, Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Tainara Kabenba, indígena e activista ambiental, o filósofo Viriato Soromenho-Marques, a actriz brasileira Zezé Motta, entre outros.