Tem 23 dias. Nasceu num campo de refugiados com pais de primeira vez. Tão pequenino para tamanha injustiça no mundo, o seu, que é feito desde o princípio de contentores e arame farpado. Pedem-me para o observar. Chora. Tem o abdómen distendido. Mas é apenas o intestino a adaptar-se ao mundo fora da barriga da mãe, e pais inexperientes que não sabem como ajudá-lo com as cólicas e sem ninguém para os ensinar. Explico-lhes o que devem fazer, peço-lhes para fazerem comigo as massagens ao seu menino. Pequenino. Que vive num contentor em volta de arame farpado. O choro termina. Sossega aliviado. Abre os olhos, e a mãe sorri o sorriso mais bonito do mundo: o de uma mãe a olhar para o seu filho.
Aterrei num lugar à beira do Mediterrâneo há algumas semanas. Sou médica interna de medicina geral e familiar e pedi uma licença sem vencimento para vir exercer medicina humanitária. As narrativas que eu oiço de cada um que nos chega aos cuidados aqui incluem tratamentos indignos, longas esperas ao pedido de asilo, campos erguidos por arame farpado, milhares de quilómetros em pés sujeitos à crueldade, histórias de violência exercida por autoridades de países na Europa e também nos países com os quais a Europa estabeleceu acordos bilaterais, externalizando as suas fronteiras.
A migração não é crime, contudo, tendemos a criminalizar as pessoas que migram, rotulamos os que nos chegam irregulares como “ilegais”, enquanto lhes negamos os seus direitos e lhes renunciamos passagens seguras. As razões para as pessoas saírem das suas casas são muitas, desde a guerra e conflitos, perseguição, desastres naturais, crises económicas, falhas no acesso à educação e saúde, e muitas outras que não cabem neste parágrafo. E a migração irregular acontece tantas vezes porque as pessoas não têm outra escolha a não ser utilizar canais irregulares, porém a migração irregular não isenta os Estados da obrigação de proteger os direitos destas pessoas, porque todas têm o direito ao cumprimento dos seus direitos humanos.
Não há vidas ilegais. Nenhum ser humano é ilegal. E chamar os migrantes de ilegais é ignorarmos a sua humanidade e as suas existências enquanto pessoas. Quando termos desumanos são usados, a discriminação é aceite e tornamos as pessoas alvos de desprezo, normalizando a utilização de medidas punitivas e restringindo ainda mais os processos migratórios ao promover o policiamento e a sua detenção. Utilizarmos a palavra ilegal ameaça também a solidariedade e origina a criminalização da ajuda humanitária, levando à perda de ainda mais vidas.
Escrevo estas linhas enquanto penso nos que já me passaram pelas mãos a precisarem de cuidados aqui em missão, e naquele recém-nascido, naquele lugar vergonhoso, numa Europa de fronteiras militarizadas, sem que estes muros terminem os processos migratórios, porque os tornam apenas mais perigosos e mortíferos. As pessoas saíram das suas casas, e vieram, algumas arriscando-se em barcos insufláveis sobrelotados pelo mar Mediterrâneo, a fronteira mais mortífera do mundo. E quando aqui chegaram, retirámos-lhes a igualdade de direitos.
Criminalizámos e criminalizamos a migração, com políticas que repudiam a mobilidade enquanto direito humano consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos. E estas vedações abrem cada vez mais um fosso que nos separa enquanto pessoas, alimentando o medo do outro e da diferença, que não existe, em vez de seguirmos por um caminho que luta pela liberdade de movimento e pela defesa dos direitos humanos.