Rodrigo regenera órgãos humanos para acabar com a espera por transplantes

Investigador de 27 anos criou a Orgavalue, uma startup que desenvolveu um processo para diminuir a taxa de rejeição dos transplantes. E tem somado prémios.

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Rodrigo Silva criou um projecto que regenera órgãos para transplantes Paulo Pimenta

Rodrigo Val d'Oleiros e Silva sempre quis ser médico-cirurgião e, tendo em conta os bons resultados no secundário, tudo parecia indicar que o sonho se iria concretizar. Até que algo mudou. “Desisti [da escola] no meu 12.º ano porque entrei em confronto com o tipo de ensino que se utiliza. É muito baseado na nota e numa avaliação muito pobre que não dignifica o verdadeiro conhecimento e o trabalho dos estudantes. Fiz tudo por exame e depois, obviamente, não consegui nota para Medicina”, começa por explicar em entrevista ao P3.

Ainda assim, não esteve muito longe. Entrou em Medicina Dentária na Faculdade de Medicina Dentária da Universidade do Porto (FMDUP), cidade onde vive, e deixou-se levar, ainda que sempre com o desejo de se tornar cirurgião plástico. E foi este curso que o acabou por levar à criação da Orgavalue, startup que desenvolveu um projecto para regenerar órgãos humanos, tornando-os passíveis de ser transplantados. Assim, quase sem estar à espera, foi parar à Medicina e à Cirurgia.

A ideia já lhe valeu vários prémios — só este ano foram sete. O European Innovation Academy, atribuído por várias instituições de Sillicon Valley, foi o primeiro; seguiram-se o de Jovem Empreendedor, da Associação Nacional de Jovens Empresários (ANJE), o BIP Acceleration, da Universidade do Porto, o Born from Knowledge, da Agência Nacional de Inovação, e o segundo lugar na competição europeia Jumpstarter. Todos foram importantes, mesmo quando foram apenas nomeações. “Costumo dizer que um prémio é mais para conhecimento do público. É para eles saberem o que é que nós andamos aqui a fazer, porque mérito tenho todos os dias no meu trabalho”, afirma.

O objectivo da Orgavalue, explica o jovem de 27 anos, “é eliminar a lista de espera por transplantes de órgãos” — e minimizar o risco de estes serem rejeitados pelo paciente. O foco inicial é o fígado, mas a regeneração também pode ser feita em órgãos como o pâncreas, o pulmão e até o coração. A expectativa é que em 2028 já se possa usar este método para transplantes em humanos.

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O órgão fica branco e transparente quando está sem células Paulo Pimenta

“O que nós fazemos é pegar em órgãos que são previamente descartados para os resíduos hospitalares ou por pacientes que são incompatíveis. Removemos as células através de um processo de lavagem e colonizamos com novas células, personalizando o órgão para o paciente que necessite”, explica o investigador, que começou este projecto em 2019, quando se associou a um grupo de investigação do i3S (Instituto de Investigação e Inovação em Saúde) que desenvolvera um “​gel injectável que poderia ser utilizado para a regeneração de novos tecidos humanos”​. Ao conhecê-lo, pensou que poderia “ir mais longe” e regenerar órgãos de animais e de humanos.

As experiências em órgãos de animais foram bem-sucedidas; seguem-se, agora, os testes em órgãos humanos. Idealmente, o que acontecerá num futuro próximo é que, quando um hospital ligar para a Orgavalue a solicitar um órgão, a startup o descongele e lhe injecte as células do paciente que precisa do transplante.

Um processo que funciona da seguinte forma: primeiro, retiram-se as células do órgão que vai ser utilizado para o transplante, restando apenas a parte exterior, “uma espécie de carcaça branca e transparente”, que pode ser congelada entre os -20 e os -80 graus Celsius até seis meses. Quando o hospital ligar a pedir um órgão, esta “carcaça” é descongelada e injectam-se as novas células retiradas do sangue do paciente que precisa do transplante.

No fundo, adianta o investigador, é como se o órgão fosse uma alface que pode estar no frigorífico vários dias sem se estragar, “mas quando é cozinhada tem de ser automaticamente comida”.

Órgãos mais caros, mas mais seguros

Personalizar órgãos ajudaria milhares de pessoas em Portugal “e 50 mil na Europa”, adianta Rodrigo. Além disto, reduziria a lista de espera (e as mortes) e a taxa de sucesso dos transplantes seria maior, tendo em conta que as células do órgão são do paciente transplantado — o que significa que não há o risco de ser rejeitado.

Segundo o investigador, um transplante hepático em Portugal custa, “em média, 100 mil euros”, já com os custos hospitalares e cirúrgicos associados, mas não inclui a taxa de rejeição, a toma de imunossupressores (medicamentos que reduzem a possibilidade de o órgão ser rejeitado) e desenvolvimento de outras doenças.

Um fígado da Orgavalue rondaria os 280 mil euros, mas, em contrapartida, seriam salvaguardados os custos com o internamento dos pacientes à espera de um órgão (ou que nunca chegam a receber um) e com “a quantidade de imunossupressores" necessários para evitar a rejeição do transplante, um pormenor de especial importância tendo em conta que "54% destes pacientes desenvolvem infecções, cancro e condições auto-imunes porque o sistema imunológico ‘é desligado’”. Além disto, 25% precisam de um novo órgão em cinco anos.

Como os hospitais públicos são os únicos que podem fazer transplantes, tudo isto custaria menos ao Estado, razão pela qual já apresentou a ideia ao ministro da Saúde, Manuel Pizarro. “Queremos trabalhar com o Sistema Nacional de Saúde. Estamos em discussões para perceber como é que podemos colaborar ou ter o apoio do Estado para que este projecto vá para a frente”, revela.

Por outro lado, os testes para regenerar cada órgão podem custar até 50 mil euros à Orgavalue e, uma vez que Rodrigo é o único CEO e não tem financiadores, tudo isto fica mais difícil. “Numa semana, posso gastar 20 mil euros em experiências, o que é absurdo. É claro que o retorno futuro vai ser astronómico, mas o risco também é sempre maior, expõe. “Em Portugal, só temos investidores que querem investir numa ideia que já esteja no mercado.”

Primeiro retiram-se as células do órgão e depois acrescentam-se as do paciente que precisa do transplante Paulo Pimenta
A regeneração de órgãos pode ser feita no pâncreas, pulmões, coração Paulo Pimenta
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Primeiro retiram-se as células do órgão e depois acrescentam-se as do paciente que precisa do transplante Paulo Pimenta

As parcerias com os hospitais, com a Universidade do Porto e com o Instituto Nacional de Engenharia Biomédica (INEB) são apenas institucionais, o que quer dizer que não há dinheiro envolvido. Desta forma, o financiamento utilizado para os testes vem dos prémios que Rodrigo ganha. Mas, quando se esgota, sai-lhe do próprio bolso.

Quando o erro é uma solução

O percurso de Rodrigo, porém, não se resume a este projecto. É médico dentista, tornou-se investigador no i3S, fez mestrado em Medicina, está a fazer doutoramento em Medicina Regenerativa e ainda arranjou disponibilidade para fazer intercâmbios e cursos intensivos em países como os Estados Unidos, França e Brasil.

Tem a agenda preenchida, mas, garante, ainda lhe sobra espaço para um curso de cirurgia reconstrutiva. No meio de tudo isto, pouco tempo lhe sobra para estar com amigos, mas também não é algo de que precise, diz. Na Orgavalue, colabora com outros três médicos (e amigos), por isso consegue sempre estar com algum.

Tirar duas semanas de férias para não fazer nada é “horrível” e ficar um dia sozinho também não lhe agrada. “O meu tempo livre é tudo isto. Quando visito um país, vou com os meus amigos, e aos bocadinhos vou tendo tempo livre. Não há necessidade de ter um dia agendado para estar com pessoas. Estou com toda a gente todos os dias no meio do meu trabalho, porque montei o meu esquema assim”, revela.

Reconhece que é um plano curioso, mas diz que até agora tem funcionado. Para já, a prioridade é a Orgavalue, mas no futuro não descarta a possibilidade de criar outros projectos. Quanto ao seu futuro, reconhece que talvez tivesse sido mais fácil chegar à Medicina se não tivesse desistido do 12.º ano e, quem sabe, hoje já poderia estar a operar. Ainda assim, garante, “não foi um erro, foi uma solução”: “Quantas vezes já errei na Orgavalue e utilizei esse erro para crescer. Se calhar, a perspectiva que eu tinha do que era certo não era. O erro era o que estava certo e explorei isso e cresci.”

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