Pessoas em risco de exclusão criaram companhia de teatro para poderem ganhar palco

Chama-se Do Lado de Fora e surge no seguimento de alguns programas de inclusão postos em prática no Porto em que esteve envolvida a Apuro Associação Social, mentora do projecto.

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Ana "Black Rose", nome artístico, já tinha trabalhado antes com a Apuro. Agora, é uma das fundadoras da companhia de teatro Do Lado de Fora. Paulo Pimenta/Arquivo

Há pouco mais de um mês e meio, estava o PÚBLICO presente, e Ana, Emílio e João, entre outros actores amadores, ensaiavam para uma peça de teatro criada no âmbito de um projecto temporário direccionado para pessoas em situação de sem-abrigo. Nessa altura, os três davam conta do desejo de que, desse fôlego, algo maior nascesse. E essa vontade concretizou-se. Nesta quarta-feira de manhã, na Junta de Freguesia do Bonfim, em conjunto com os seus pares, ajudaram a apresentar a mais recente companhia de teatro da cidade do Porto. Nasceu a Do Lado de Fora, criada para abrir caminho até ao palco a pessoas em risco de exclusão, nomeadamente em situação de sem-abrigo, não para que se acomodem às luzes do estrelato, mas com o fito de que a cidadania seja realmente feita por todos e para todos.

Desta vez, sem representar qualquer papel escrito à boleia da inspiração que dá vida aos universos paralelos da ficção, Emílio Costa, nascido há 60 anos no bairro da Pasteleira, reclama, com o nascimento desta nova companhia, um lugar para que a sua voz e as vozes de outros se façam ouvir mais alto. “Não é só ir para o palco e representar. A ideia é chamar à atenção dos responsáveis pela cidade sobre a situação precária em que alguns [vivem]”, afirma com a convicção e o comprometimento de quem subscreve um manifesto.

“A ideia que tenho é fazer um alerta”, diz. E deixa bem claro qual é o motor da sua motivação: “Porque somos pobres”. Emílio, que já acumula alguma experiência de palco acumulada pela sua participação em projectos temporários, já esteve em situação de sem-abrigo. Também por isso, quer que a sua participação neste grupo tenha o propósito de divulgar “a situação dos sem-abrigo ou de pessoas que têm um abrigo precário”.

Por agora, a companhia conta com 18 pessoas em risco de exclusão. São quase vinte vozes diferentes e cada uma com a sua motivação. Quase todos os actores amadores já se conheciam porque faziam parte do elenco do espectáculo É!, com direcção artística da Apuro Associação Social, parte do projecto SOmOS, inserido no programa camarário Abordagens Integradas para a Inclusão Activa (AIIA), direccionado para pessoas em situação de sem-abrigo ou exclusão.

Há menos tempo, João “Canção”, como é conhecido desde os tempos em que ainda vivia no Brasil, juntou-se a este grupo de pessoas que já tinha trabalhado em conjunto em iniciativas efémeras para fundar a Do Lado de Fora. Há cerca de um mês e meio, quando participava no programa INCukTurar-te, num ensaio no Clube Fenianos Portuenses, dizia ao PÚBLICO querer voltar a explorar a sua veia artística já explorada ainda em Belo Horizonte.

Agora, dá o testemunho da sua experiência e define o seu propósito dentro do grupo: “Posso falar com propriedade sobre a importância dessa questão da inclusão. Porque como tenho menos de um ano aqui em Portugal, ter sido abraçado por esse grupo, para mim teve uma importância muito grande.” Desde aí já participou “em um espectáculo e em alguns projectos”. O resultado disso é ter passado a “entender um pouco mais sobre a cidade” e “sobre o país”. “Acho primordial esses projectos para o desenvolvimento cultural e de cidadania”, sublinha.

Ana “Black Rose”, nome artístico, continua a perseguir aos 44 anos o sonho de entrar no mundo do espectáculo. Dizia ao PÚBLICO, no início de Novembro, que desde pequena que queria ser bailarina. Outro desejo que tinha era seguir a via da representação. Agora faz parte de uma companhia de teatro que acaba de nascer. Mas o que assinala de mais importante no grupo que encontrou pouco tem que ver com o que se passa em palco: “É um encontro com uma família que nunca tive.”

Garantir sobrevivência

Responsável pela direcção artística da companhia Do Lado de Fora está o actor, encenador e homem de muitos mais ofícios no meio artístico e cultural portuense e nacional, Rui Spranger, da Apuro, que também esteve ao leme do espectáculo É!. A ideia que já vinha de trás, quando começou a trabalhar com este grupo em risco de exclusão nesse espectáculo, tornou-se mais sólida há cerca de dois meses. “Isto começou em 25 de Outubro, no primeiro ensaio da reposição do É!”, conta.

“Estivemos em segredo e pedimos segredo a toda a gente enquanto não tínhamos um espaço. Não tínhamos o basilar para podermos avançar”, diz. O grupo vai poder agora ensaiar no Salão Nobre da Junta de Freguesia do Bonfim, onde foi apresentado o nascimento da companhia.

Mas para o projecto conseguir vingar será necessário encontrar formas de subsistência. Em conjunto com alguns mecenas (ainda poucos) e com o NPISA Porto - Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo, a câmara garantiu, no dia do lançamento do projecto, dar o apoio necessário para que a sobrevivência do grupo esteja assegurada. Presente na junta do Bonfim, Fernando Paulo, vereador da Coesão Social e coordenador do NPISA, adiantou que esse suporte será prestado em função das necessidades dos projectos que vão sendo postos em marcha.

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