SPEA propõe apagão na Madeira para proteger as aves marinhas

As aves são encadeadas e ficam desorientadas com as luzes nocturnas. Por isso, a campanha da SPEA contra a poluição luminosa quer apagar a luz pública da Madeira por uma noite.

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A iniciativa quer mostrar o impacto que a luz artificial tem nas aves marinhas Ruben Jesus/SPEA

Apagar as luzes para trazer vida à noite. Pode parecer uma ideia contraditória, mas é esta a proposta da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA): com uma campanha de angariação de fundos, a SPEA quer apagar candeeiros de rua por uma noite na ilha da Madeira.

“Noite com vida” é uma acção simbólica, que tenciona mostrar o impacto negativo da luz artificial excessiva nas aves marinhas, enquanto arrecada fundos para o trabalho da associação no salvamento e estudo de soluções para estes animais. Por cada dez euros angariados até ao final de Janeiro, os municípios parceiros da iniciativa (Santa Cruz, Funchal, Câmara de Lobos e Santana) vão apagar um candeeiro de rua por uma noite no final de Outubro, altura em que o Outono convida as cagarras jovens a sair dos ninhos.

“Ao contribuir para esta campanha, as pessoas estarão a ajudar-nos a salvar centenas de aves marinhas que ficam encandeadas, a estudar o impacto da poluição luminosa, e a trabalhar com os municípios e empresas para implementar iluminação pública mais eficiente, mais adequada e mais bem direccionada”, afirma Cátia Gouveia, coordenadora do SPEA Madeira e do projecto Life Natura@night, citada em comunicado. A Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves está a aceitar doações na página da campanha até ao final de Janeiro.

Poluição luminosa mata centenas de aves

O mundo está cada vez mais brilhante e a poluição luminosa é uma das que mais rapidamente crescem pelo planeta fora. Se, por um lado, 99% dos habitantes da Europa e dos EUA vivem sob céus nocturnos mais luminosos do que seriam naturalmente, por outro, Portugal é um dos países com maior índice de poluição luminosa da Europa. “Emitimos quatro vezes mais luz por habitante do que a Alemanha”, disse ao PÚBLICO Raul Cerveira Lima, investigador do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (Universidade de Coimbra), em Setembro.

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Poluição luminosa mata cerca de 1100 aves marinhas por ano na Macaronésia Elisa Teixeira/SPEA

Além disso, estima-se que cada residente da Macaronésia (Madeira, Açores e Canárias) paga cerca de 30 euros por ano em luz pública que não utiliza. Mas os impactos na carteira não são os únicos: cerca de 1100 aves marinhas – um dos grupos de animais mais ameaçados do mundo – morrem todos os anos nestes arquipélagos, diz a SPEA.

Os patos, gansos, pássaros canoros e aves marinhas que migram à noite são dos animais mais afectados. As aves interpretam a luz como sinal de que ainda é dia (o que as pode levar à exaustão) e começam a migrar mais cedo do que é suposto, mas a iluminação artificial também pode ser confundida com o brilho do mar. É o que acontece com os juvenis de cagarra no Outono que, quando saem dos ninhos, dirigem-se às águas, onde passam a maior parte das suas vidas. Como o fazem durante a noite, procuram o brilho do oceano no horizonte como guia, mas a inexperiência leva-os à luz das zonas humanizadas – onde, encandeados pela intensidade da luz, chocam com edifícios, linhas eléctricas e veículos, o que lhes provoca ferimentos e até a morte.

Apesar de muitos municípios estarem a mudar para soluções de iluminação pública LED, que é mais eficiente a nível energético, estas “acabam por ter um impacto muito nefasto na biodiversidade”, explica a coordenadora do SPEA da Madeira ao PÚBLICO. As primeiras soluções LED luzes brancas que criavam zonas ainda mais iluminadas” –, apesar de energeticamente eficientes, têm um maior impacto nos animais. Por outro lado, iluminação com uma temperatura mais quente tem o mesmo preço e não é usada por desconhecimento, opina.

Numa altura em que, a nível europeu, se discute o tema da poluição luminosa, é mesmo o momento de actuarmos no sentido de encontrar soluções mais amigas dos animais. Ou, daqui a uns anos, poderá ser necessário trabalhar para mudar outra vez toda a iluminação, afirma Cátia Gouveia.

Conciliar biodiversidade e eficiência energética não é impossível e, na Madeira, já existem bons exemplos: em Santa Cruz e Machico, há regulamentos municipais para a iluminação pública. São os dois grandes exemplos do nosso projecto, comenta.

Actuação em várias frentes

A SPEA tenta ainda apoiar as aves com voluntários nos Açores (campanha SOS Cagarro) e na Madeira (iniciativa Salve Uma Ave Marinha), que percorrem as ilhas e recolhem centenas de aves desorientadas para as libertar junto ao mar. A associação tem trabalhado com os municípios para promover apagões durante os períodos mais sensíveis para as aves.

Fora estas acções pontuais, a associação tem desenvolvido um trabalho a longo prazo no combate à poluição luminosa e lançou este ano o projecto Life Natura@night, financiado pela União Europeia (UE), com o objectivo de estudar e minimizar os efeitos da poluição luminosa na Macaronésia.

O financiamento da UE é, contudo, parcial – segundo Cátia Gouveia, a UE cobre 60% das despesas –, pelo que os fundos da campanha Noite com Vida vão contribuir para o resgate de aves marinhas, para o estudo de animais afectados pela poluição luminosa e para a adopção de uma iluminação pública mais sustentável.

É um projecto muito ambicioso, com vários objectivos em várias frentes. Se, por um lado, vamos trabalhar ao nível do aumento do conhecimento sobre os impactos da poluição luminosa em várias espécies de animais, por outro, trabalhamos com os municípios e com a população na implementação de mudanças na iluminação pública, conta Cátia Gouveia.

Neste primeiro ano, o Life Natura@night esteve em fase preparatória, na qual já começou a trabalhar com alguns municípios na Madeira, Açores e Canárias para fazer um inventário da poluição luminosa e das colónias de aves marinhas, morcegos e insectos nessas regiões. Pretendemos criar zonas de sensibilidade onde a iluminação desses locais deve respeitar a eficiência energética e directrizes de poluição luminosa, revela a coordenadora do projecto.

Texto editado por Claudia Carvalho Silva