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Em primeiro lugar, não fazer o mal

É errado sobremedicar, como é errado privar da medicação quem com ela poderia beneficiar. Relembrando o código deontológico, atrevo-me a apontar o dedo aos colegas que criticam.

Vou repescando, com alguma frequência, memórias já algo remotas e enubladas daqueles anos do curso de Medicina. Havia uma disciplina, uma tal de “Bioética e Deontologia Médica”, que existia sem a proa de outras disciplinas, mais exuberantes e valorizadas. Mas era segura de si e consciente dos seus fundamentos. Evoco-a hoje com deferência, como se evocam aqueles colegas discretos e ensimesmados dos primeiros ciclos, a que o futuro se encarrega de dar relevo.

Retorno, assim, aos Princípios: tenho uma certa cisma com os princípios da Autonomia e da Não-Maleficência, sem desprimor pelos princípios da Beneficência e da Justiça. Agrada-me partir dessa base: em primeiro lugar, não fazer o mal (tentando, a partir daí, fazer o bem que me for possível) e respeitar os doentes e suas famílias, envolvendo-os na tomada de decisão. E faço por reler, com certa regularidade, o Código Deontológico da Ordem dos Médicos. Sempre darei com algo a corrigir(me), procurando então penitência no compromisso diário de melhorar. Tendo por absoluta e dolorosamente adquirido que o amadurecimento mais honesto e consolidado advém dos erros próprios, que mais nos feriram no âmago.

Com gradual disciplina, faço por investir na psicoeducação dos meus jovens utentes e seus familiares. Dos racionais teóricos às alternativas terapêuticas, procuro disponibilizar a suficiente informação que lhes permita um posicionamento livre e esclarecido, face a uma decisão que lhes diz diretamente respeito. Seja no sentido do consentimento ou da invalidação da minha proposta.

A introdução de psicofármacos no plano terapêutico das crianças e jovens parece-me um exemplo apropriado e fraturante. Nota-se, a este respeito, um posicionamento dicotomizado e absolutista da sociedade, traduzido em expressões como “precisa de medicação” ou “sou contra medicar crianças”. Importa respeitar o princípio da Autonomia (neste caso, atribuída aos responsáveis legais), mas após devido e rigoroso esclarecimento. Porque temos hoje facilmente difundidas opiniões precárias acerca de tudo e do seu contrário. Opiniões vertidas com costumeira eloquência sobre temas de “especialidade”, que influenciam e condicionam, colocando-nos desafios crescentes no âmbito da nossa atividade.

Cada especialidade médica destaca-se pelas suas particulares especificidades. Em comum, temos seis anos de Mestrado Integrado e um ano de Internato Geral. Apenas então se iniciará o Internato de Formação Específica numa determinada especialidade, com duração de cinco a seis anos, escolhido com base nos gostos e apetências de cada médico. Volvidos 12 ou 13 anos, temos então forjado um recém-especialista preparado, mas raramente acomodado. A Psiquiatria da Infância e da Adolescência deriva da Psiquiatria Geral, mas dela divergindo substancialmente, no que respeita à abordagem e à intervenção. Os quadros psicopatológicos clássicos, estruturados e floridos, que inspiraram tantos dramas e thrillers do cinema, manifestam-se tendencialmente em adultos. Mas haverá um processo, mais ou menos silencioso, que decorre desde cedo. É do senso comum que a infância e a adolescência correspondem a períodos de volatilidade. Trata-se de um processo transacional, no qual se implicam fatores diversos, como as caraterísticas da criança e do seu meio familiar e sociocultural. Os sintomas ocorrem, muito naturalmente, como “dores de crescimento” que pontuam com exclamações de omnipotência normativa ou interrogações de insegurança, processos que são mais ou menos tumultuosos.

As alterações emocionais em idade pediátrica correspondem predominantemente a vivências de stress situacional, transitórias e normativas, naturalmente resolúveis com abordagens psicossociais e não farmacológicas. No entanto, os sintomas podem ser patológicos, quando intensos e condicionadores do funcionamento da criança. A este respeito, note-se que cerca de 10% das crianças e mais de 20% dos adolescentes evidenciam manifestações psicopatológicas. E que os principais quadros psiquiátricos começam a estruturar-se cedo no processo de desenvolvimento. Além das perturbações do neurodesenvolvimento (como a P. Hiperatividade com Défice de Atenção), de impacto tão substancial, sobretudo se não tratadas. Sublinhe-se que a base da intervenção é psicoeducativa e deve envolver os doentes, os cuidadores e até os próprios professores. Mas compreenda-se que algumas destas manifestações e diagnósticos requisitam introdução psicofarmacológica, com vista ao efetivo tratamento, ao alívio de sintomas, aos papéis neuroprotetor e neurorregenerador da medicação. E que as alternativas farmacológicas disponíveis são globalmente seguras e indicadas em situações de prejuízo moderado a severo. Devem, no entanto, ser implementadas após avaliação por médico especialista (Pedopsiquiatra, Neuropediatra ou Pediatra do Desenvolvimento, em função das especificidades da situação) e integradas num plano mais abrangente.

Parece-me essencial entender-se que as estratégias farmacológicas se enquadram na leitura que aquele médico fez daquele caso específico. E que, rompendo com o chavão de que “se medica demasiado”, compete ao médico formar a sua opinião e conversá-la devidamente com o seu doente, tornando claro porque seguiu aquela estratégia. É errado sobremedicar, como é errado privar da medicação quem com ela poderia beneficiar (evoco o princípio da Justiça). Relembrando o código deontológico, atrevo-me a apontar o dedo aos colegas que criticam (sem intenção construtiva e na presença dos doentes) as opções terapêuticas dos colegas antecessores, como Deuses omniscientes e omnipotentes.

Quaisquer dúvidas, receios ou crenças das famílias são compreensíveis. Vão desde a preocupação com a dependência (risco praticamente inexistente) e com os possíveis efeitos adversos (possíveis, mas geralmente controláveis) até ao receio de que a medicação “seja para sempre” (o que dificilmente acontecerá). Mas temos, num polo diametralmente oposto, a crença de que a medicação é a panaceia (negligenciando-se mudanças de comportamentos e dinâmicas disfuncionais). Todos estes conflitos devem ser resolvidos no contexto da consulta e compete ao médico fazê-lo. Devidamente fundamentado nos princípios de que os doentes devem ser agentes esclarecidos e ativos na tomada de decisão, de que a obrigação de não fazer o mal (primum non nocere) antecede o dever de se fazer o bem e de que os doentes devem ter o justo e devido acesso aos melhores cuidados disponíveis.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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