Acordo na COP15: conferência fecha com novo fundo internacional para a biodiversidade
Acordo foi alcançado de madrugada. Compromisso mobiliza 200 mil milhões de dólares anuais internacionalmente para acções de conservação da diversidade biológica, provenientes de várias fontes.
Mais de 190 Estados chegaram a acordo na madrugada desta segunda-feira em Montreal, no Canadá, sobre o novo Quadro Global da Biodiversidade até 2030, que adoptou 23 metas que visam travar a perda da diversidade biológica. Uma das metas é mobilizar, até ao final desta década, pelo menos 200 mil milhões de dólares por ano (o equivalente a 188 mil milhões de euros), de todo o tipo de fontes, para pôr em prática estratégias nacionais de planos de acção da biodiversidade.
Uma das questões mais polémicas da 15.ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas para a Diversidade Biológica (COP15) era a exigência, por um grupo de países em desenvolvimento e do Sul Global (normalmente aqueles onde a biodiversidade é maior), de que fosse criado um novo fundo específico para a biodiversidade. O Brasil – cuja delegação representa ainda o Governo de Jair Bolsonaro – liderava esta exigência, que levou até a uma saída em bloco das negociações na semana passada. E acabou por ser aprovado, embora não nos termos que estes países pediam.
“O Brasil acalmou-se nesta parte final. Percebeu que tendo havido um consenso na América do Sul em relação ao pacote de documentos que estava em cima da mesa, com o apoio da Colômbia, do México, da Argentina, seriam eles os maus da fita – e foram, quer dizer, tornaram as negociações muito difíceis”, diz Francisco Ferreira, líder da associação ambientalista Zero, explicando que no final este país não se tornou um obstáculo ao acordo.
“Este fundo é um sinal. É um bocado como aconteceu com a cimeira do clima [COP27, em Sharm el-Sheikh, com o fundo para as perdas e danos relacionados com as alterações climáticas], não é? Quer dizer, não é o fundo em si que faz a diferença, mas é um sinal político”, considera Francisco Ferreira, que esteve em Montreal também como representante da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa.
A reivindicação da criação de um novo fundo acabou por ser satisfeita, embora cedendo ao que a União Europeia e alguns países ricos defendiam. “Houve uma controvérsia grande, sobre se deveria ser ou não separado do Mecanismo Internacional para o Ambiente [(GEF, na sigla em inglês), supervisionado pelo Banco Mundial, que tem sido o principal financiador de acções para a preservação da biodiversidade]. A Europa defendia que deveria ser no quadro do GEF”, explica Francisco Ferreira.
“A Europa, aliás, dizia que não era preciso nenhum fundo novo: foi exactamente igual ao clima, também dizia que não queria criar um novo fundo para as perdas e danos porque se conseguia arranjar financiamento voluntário”, explica Francisco Ferreira, que esteve também em Sharm el-Sheikh em Novembro.
Estabeleceu-se a meta de mobilizar recursos financeiros no valor de 200 mil milhões de dólares anuais, de várias fontes (dinheiro público, privado, internacional e dos Estados), para pôr em prática planos de acção e estratégias de conservação da biodiversidade até 2030 - pretende-se que até esta data se consiga travar a perda de espécies. Neste momento, estima-se que pelo menos um milhão de espécies estejam ameaçadas de extinção.
“São 200 mil milhões de dólares. No acordo de Paris, temos 100 mil milhões de dólares por ano [para adaptação e mitigação climática, e nunca se conseguiu chegar a esse valor] e aqui é o dobro. Mas, atenção, isto é o financiamento total, não é através do fundo. A única coisa que fica aí estabelecida são 20 mil milhões anuais de financiamento oficial dos países desenvolvidos até 2025 e depois 30 mil milhões em 2030. O resto tem de vir de outras fontes", explica Francisco Ferreira.
Oposição da RDC
O presidente da conferência, o ministro da Ecologia da China, Huang Runqiu, considerou ter-se obtido acordo, apesar de a República Democrática do Congo (RDC) ter protestado. "No final, ainda houve um tempo de paragem, a RDC bloqueou a decisão." Segundo a Associated Press (AP), opunha-se porque pretendia que o documento criasse um fundo completamente novo para a biodiversidade, dotado de pelo menos 100 mil milhões de dólares anuais. O que acabou por vingar é esta solução de um novo fundo no âmbito do GEF, com a intenção de ir buscar dinheiro a diversas fontes. “Criar um novo fundo no âmbito do GEF é a melhor forma de obter algo de forma imediata e eficiente", afirmou Christophe Béchu, ministro para a Transição Ecológica francês, citado pela AP.
"A representante do México disse entretanto que fazia anos amanhã e que a melhor prenda que poderia ter era conseguir um acordo e que toda a gente estava alinhada para o conseguir", contou Francisco Ferreira. "Durante uns momentos, o presidente chinês [da COP] conversa com o secretariado e depois diz: 'Face ao aplauso que as declarações do México tiveram, considero que há consenso em relação à aprovação do pacote', e bate com o martelo e acabou. Foi um momento complicado. A RDC ainda interveio a dizer que não podia ser assim, mas acho que não há grandes hipóteses", relatou Francisco Ferreira.
O pacote de documentos foi assim aprovado por consenso e não por unanimidade, explicou David Ainsworth, porta-voz da Convenção sobre a Diversidade Biológica. Esta é uma figura que permite que fiquem registadas algumas diferenças de opinião - e a RDC não fez uma objecção formal aos documentos, sublinhou.
Um impulso para proteger 30% do planeta
No fim de contas, foi criado um fundo no âmbito do GEF, que deve estabelecer, em 2023 e até 2030, um fundo fiduciário especial para dar apoio à aplicação do Quadro Global da Biodiversidade, para complementar os apoios existentes, garantindo a implementação atempada do Quadro Global para a Biodiversidade, levando em conta a necessidade de existir um fluxo previsível, adequado e a tempo de fundos, diz o documento sobre a mobilização de recursos aprovado pelo plenário.
“A biodiversidade nunca foi tão relevante económica e politicamente como é actualmente. O acordo de hoje é uma notícia óptima e cria um verdadeiro impulso para 2030 e para os objectivos fundamentais que temos para cumprir, incluindo proteger 30% das áreas terrestres e marinhas”, comentou Carlos Manuel Rodriguez, secretário do GEF, num comunicado de imprensa.
O compromisso directo dos países desenvolvidos é de aumentar os recursos financeiros internacionais para os países em desenvolvimento e pequenos Estados-nação, incluindo ajuda oficial ao desenvolvimento, para pelo menos 20 mil milhões de dólares anuais e 30 mil milhões, no mínimo, até 2030.
Até ao momento, 17% da terra e 8% dos mares estão protegidos, e um dos objectivos mais importantes desta conferência era a criação de áreas protegidas em pelo menos 30% das zonas marinhas e terrestres do planeta, as mais importantes para a conservação da biodiversidade. “Havia a ideia de dizer que eram 30% de áreas terrestres e 30% das áreas marinhas, mas no texto ficou só 30% das áreas, sejam elas quais forem. A ideia era fazer esse equilíbrio, mas não se fez, perdeu-se um pouquinho”, comentou Francisco Ferreira.
“Existia um conjunto de metas quantificadas de longo prazo para 2050 relativas ao aumento da área de ecossistemas naturais ou da percentagem de espécies em risco e que desapareceram”, diz a Zero, num comunicado sobre o desfecho da COP15. “Mas é muito claro: mais vale perder na qualificação dos objectivos de longo prazo do que nos de curto prazo. Ou seja, a perder números, mais vale perder para 2050, que está longe. Os de 2030, que está mais perto, é que são os mais fundamentais”, sublinhou Francisco Ferreira.
Mas será este acordo suficiente para garantir que o mundo vai passar a cuidar mesmo da diversidade biológica, garantindo a infinidade de serviços que os ecossistemas prestam à humanidade? Afinal, das duas dezenas de metas do quadro anterior da Convenção de Biodiversidade, as Metas de Aichi, nem uma foi cumprida de forma satisfatória. "Este acordo representa um grande marco para a conservação do nosso mundo natural, e a biodiversidade nunca esteve tão alto na agenda política e económica. Mas pode ser abalado se a sua aplicação for lenta e não se mobilizarem os recursos prometidos", comentou Marco Lambertini, director-geral da organização ambientalista WWF International, citado num comunicado de imprensa.
Embora inclua um processo de monitorização do cumprimento das metas, essa avaliação é voluntária, o que pode comprometer a sua eficácia. "Não tem um mecanismo para responsabilizar os governos por aumentar o nível de acção se as metas não estiverem a ser alcançadas", sublinhou Lambertini. "Os governos escolheram o lado certo da história em Montreal, mas a história vai julgar-nos a todos se não cumprirmos as promessas feitas hoje", afirmou.
Para Portugal
O que significa este acordo sobre a salvaguarda da biodiversidade para Portugal? “Acho que deve ser precisamente uma forma de mobilização em prol das questões de salvaguarda da biodiversidade. Alerta para estarmos a subsidiar actividades como a agricultura, que põem em causa a biodiversidade. Para a questão de haver subsídios e incentivos contrários à salvaguarda da biodiversidade”, sublinha Francisco Ferreira.
“Atingir os 30% de protecção das áreas terrestres e marinhas até 2030... É preciso acelerar os planos de gestão das áreas protegidas, que ainda não temos e que são instrumentos absolutamente cruciais”, acrescenta.
O alerta sobre as espécies exóticas é outro aspecto que nos diz claramente respeito. “É curioso que nas exóticas invasoras até está escrito na meta que a prioridade deve ser nas ilhas. Aqui os casos dos Açores e da Madeira ganham uma prioridade maior”, frisa Francisco Ferreira. A meta do novo Quadro Global de Biodiversidade, ou Acordo Montreal-Kumning, em referência às duas cidades em que foi negociado, prevê que até 2030 se "eliminem, minimizem, reduzam e/ou mitiguem os impactos de espécies exóticas invasoras, reduzindo as taxas de introdução e estabelecimento de outras espécies exóticas invasoras conhecidas ou potenciais em pelo menos 50%".