Louisville: um retrato do “campo de batalha” que são os Estados Unidos

Música, fotografia, texto e ilustração compõem o projecto Louisville, que faz o retrato de um país marcado pela violência, tensão social e instabilidade política e económica.

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Nassel, um dos jovens pugilistas de Louisville, posa para um retrato no ginásio Champ Camp, em Louisville, Estados Unidos, 26 de Outubro de 2020 MÁRIO CRUZ

Decidia-se, a 3 de Novembro de 2020, quem seria o novo Presidente dos Estados Unidos da América: Donald Trump ou Joe Biden. No terreno, dois repórteres portugueses, Pedro Sousa Pereira e o fotojornalista Mário Cruz, percorriam alguns estados do país com o objectivo de medir o pulso aos norte-americanos no período pré-eleitoral. “O nosso trabalho não era acompanhar as campanhas de Biden ou Trump; era, sim, fazer um retrato do país daquele período”, explica o fotojornalista ao P3, em entrevista.

O convulso ano de 2020 foi, nos Estados Unidos, marcado pelo surgimento da pandemia de covid-19, em Janeiro, pelo assassinato de George Floyd por um polícia, em Maio, e, já perto do final do ano, pelas eleições presidenciais. O combate ao vírus, a luta contra o preconceito racial e o duelo entre os candidatos presidenciais transformaram os EUA daquele período num campo de batalha, refere Cruz. “Essa sensação de luta acompanhou-nos em todos os estados.” Foram esses a Florida, o Alabama, o Kentucky, Pensilvânia e Washington. “O trabalho foi realizado em várias cidades com algum planeamento, mas sobretudo ao sabor do vento, aberto ao inesperado.”

E inesperado é o conjunto de obras que resultaram dessas viagens, que estão reunidas num vinil — com música dos artistas e bandas portugueses Frank Stein, Guilherme Lucas, Lödo, O Imundo Decôro, Oscar Pinho, Thee Magnets e The Chrystal Cabinet — e num booklet (ou encarte) de 48 páginas, onde constam textos e ilustrações de Pedro Sousa Pereira e fotografias de Mário Cruz. A receita obtida a partir da venda de Louisville reverterá, na totalidade, para a organização Jail Guitar Doors, que promove a reabilitação e reintegração de reclusos nos Estados Unidos através do ensino de música nas prisões.

De norte a sul do território norte-americano, Pedro Sousa Pereira recolheu testemunhos, entrevistas, em formato de áudio — que foram, a posteriori, matéria-prima para a criação dos músicos — e Mário Cruz fotografou. “Todos nós, após o trabalho ter sido feito, tivemos uma nova tela em branco”, reflecte o fotojornalista. “Eu tive oportunidade de fazer algo que nunca tinha feito com as fotografias, de olhar para elas de uma nova forma, recorrendo a técnica de múltipla exposição.” Cada fotografia de Cruz tem gravada mais do que um disparo, mais do que um momento no tempo, motivo pelo qual a sua leitura se desdobra, fornecendo novos detalhes a cada mirada.

Fotografia do projecto Louisville ©Mário Cruz
Fotografia do projecto Louisville ©Mário Cruz
Fotografia do projecto Louisville ©Mário Cruz
Fotografia do projecto Louisville ©Mário Cruz
Fotografia do projecto Louisville ©Mário Cruz
Fotogaleria
Fotografia do projecto Louisville ©Mário Cruz

Embora o projecto diga respeito à realidade americana num todo, o nome Louisville foi adoptado pelos seus intervenientes por considerarem que a cidade do estado do Kentucky é “o epicentro” simbólico da luta racial e social que se mantém em curso, no presente, nos Estados Unidos. “Para além de ter sido o local onde a Breonna Taylor foi assassinada [em Março de 2020], foi o sítio onde tivemos o primeiro contacto com o movimento Black Lives Matter (BLM).”

Esse contacto com o BLM foi muito relevante para a dupla de jornalistas, porque a partir dele foi possível olhar o panorama político e social do país de um outro ângulo. “Tivemos a verdadeira sensação de que a questão política não se resumia a dois partidos”, reflecte o fotógrafo. “Não eram apenas os democratas contra os republicanos; havia um terceiro partido que, apesar de não se apresentar como tal, teve uma força muito significativa nas eleições.” Sousa e Cruz acreditam que a intervenção e activismo do BLM “foi determinante na vitória de Joe Biden”.

Foi também em Louisville, a cidade onde nasceu Muhammad Ali, que a dupla conheceu o jovem pugilista Demontaze ‘​JuicyDuncan, na altura com 18 anos e hoje vencedor de cinco Luvas de Ouro. “É uma história hollywoodesca”, comenta o fotógrafo, que foi duas vezes premiado pelo World Press Photo. “O pai e a mãe tiveram problemas associados a droga, crime e acabaram por morrer. Ele foi adoptado pelo treinador de boxe, teve uma reabilitação enorme e aprendeu que a luta não se faz só dentro do ringue.” Duncan quis marcar a diferença ao ser voluntário da campanha do partido democrata.

Ilustração de Louisville ©Pedro Sousa Pereira
Ilustração de Louisville ©Pedro Sousa Pereira
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Ilustração de Louisville ©Pedro Sousa Pereira

Para além desse encontro simbólico, em Louisville, a dupla de jornalistas viveu outras peripécias dignas de menção noutras paragens. “Em Orlando, encontrámos um exemplo de muitas das coisas que fracturam os Estados Unidos e não são noticiadas”, refere o fotojornalista, aludindo ao despedimento colectivo dos trabalhadores da Disney World, durante a pandemia, e ao alojamento dos funcionários nos hotéis e motéis das imediações do parque temático. “Eles ocuparam os hotéis onde os turistas permaneciam quando iam à Disney. Os turistas deixaram de ir e esses foram ocupados por trabalhadores, mas também por traficantes de droga e gangues.”

Durante a viagem, os jornalistas assistiram a comícios, protestos, viveram momentos de tensão, de perplexidade. “No Alabama, fomos impedidos de entrar numa igreja por não sermos daquele local”, exemplifica. “Entrávamos de máscara numa estação de serviço e éramos gozados por usá-la.” São apenas dois de muitos exemplos que são abordados nas obras realizadas pelos músicos, ilustrador e fotógrafo de Louisville, projecto que foi apresentado a 26 de Novembro, durante o festival Porto Pos Doc, no Porto, e nesta quinta-feira, 15 de Dezembro, no espaço Narrativa, em Lisboa.

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