Petição tenta travar destruição da calçada na requalificação da avenida da Horta
A obra em curso ameaça o património modernista do Faial, nos Açores. Peticionários já escreveram à Comissão Europeia a denunciar a situação.
A avenida litoral da Horta, cidade fundamental nas relações transatlânticas, é um dos postais emblemáticos da ilha do Faial, nos Açores. A actual paisagem, de traço modernista, foi projectada em meados do século XX, contribuindo para a valorização da baía da Horta, que integra o Clube das Baías mais Bonitas do Mundo. Actualmente, está em curso a requalificação da avenida, uma obra há muita aguardada pelos faialenses, mas que está a gerar controvérsia porque o projecto pretende mudar a face da cidade e colocar em causa o património do modernismo. A retirada do actual piso em calçada portuguesa, que se estende ao longo de mais de um quilómetro, é a mudança mais criticada e motivou, inclusive, uma petição que já conta com 1118 assinaturas.
“O que nos moveu é a ligação que temos com aquela avenida, que faz parte da nossa identidade e do nosso património”, explica ao PÚBLICO Manuela Bairros, criadora da petição. A diplomata de carreira, actual embaixadora de Portugal em Díli, ficou “perplexa” quando em Setembro foi de férias à Horta – a terra onde cresceu, que visita regularmente e onde deseja passar a reforma – e notou que a calçada do passeio interior da avenida já tinha sido retirada.
“Só depois de começarem a retirar o piso de um dos lados do passeio é que eu e os faialenses percebemos que estava previsto retirar toda a calçada. Quem desenhou o projecto não percebeu a ligação que os faialenses têm à avenida.”
A petição pretendia dar o “respaldo político” para a câmara municipal pedir a revisão da obra. Reconhecem a necessidade de reordenar a cidade, mas pedem que tal “respeite o passado”. “Não se pode substituir uma calçada só por razões estéticas, porque se gosta mais ou menos. Faz parte de um património.”
Face à resposta negativa do município, Manuela Bairros escreveu à Comissão Europeia, para denunciar a utilização de fundos em “projectos que vão destruir património”. A obra, de cerca de três milhões de euros, tem um financiamento europeu de mais de um milhão de euros. “A Horta é a cidade que é porque tem a sorte de ter uma baía com aquela beleza e que na década de 1950 e 60 foi urbanizada de forma absolutamente elegante.”
Inaugurada em 1961, a Avenida 25 de Abril (que nasceu com o nome de Arantes de Oliveira, ministro das Obras Públicas de Salazar) foi construída pelo regime do Estado Novo e representa um dos melhores exemplos do movimento modernista no urbanismo em Portugal.
“O que está em causa é não perder o valor do ambiente criado”, explica José Manuel Fernandes, arquitecto e professor catedrático na Universidade de Lisboa, que destaca a coerência urbanística, ambiental e arquitectónica daquela zona da cidade insular.
O docente lembra que a avenida da Horta faz parte de um movimento que procurou “actualizar as cidades antigas”, virando-as para o mar, tal como aconteceu em Ponta Delgada. O caso da cidade da ilha de São Miguel, cuja frente mar sofreu uma requalificação profunda com a construção das Portas do Mar em 2008, é apresentado pelo professor como um bom exemplo, uma vez que não eliminou a avenida marginal modernista.
É preciso “melhorar” o centro da Horta, reconhece, mas é igualmente necessário manter o “ambiente arquitectónico”. “É importante considerar esse valor e não olhar como uma coisa velha para deitar ao lixo”, avisa José Manuel Fernandes, acrescentando ainda que a calçada portuguesa exige uma “atenção especial” dos poderes públicos. “A calçada é um pavimento tradicional e artesanal. É dúctil, adaptável, resiste ao choque e é extremamente fácil de reconstruir. É um espelho da nossa tradição arquitectónica urbana.”
Apesar das várias tentativas do PÚBLICO junto do gabinete do presidente, não foi possível questionar o município sobre a petição nem sobre o projecto da autoria de um consórcio formado pela Sociedade Portuguesa de Inovação, a Extrastúdio e a Oficina dos Jardins. Contudo, quer numa sessão de esclarecimento à população quer através da imprensa regional, a autarquia da Horta tem alertado que um atraso na concretização da obra pode significar uma perda de 958 mil euros de fundos comunitários.
O município, liderado pelo social-democrata Carlos Ferreira, tem lembrado ainda que o processo começou em 2013, foi aprovado em 2016 (quando a câmara era PS), esteve em consulta pública e foi apresentado em seis sessões em diferentes locais.
Para a autora da petição, os argumentos não convencem. Manuela Bairros afirma que as sessões públicas não envolveram toda a população e que as “pessoas que lá foram nem sequer se aperceberam” o que estava em causa, porque “não passaria pela cabeça de ninguém” remover o piso. Quanto ao financiamento, a embaixadora acredita que existem “maneiras de contornar o problema” caso exista “vontade política”. “Existem alternativas. Retirar o piso todo da avenida é que é irremediável. As verbas não o são.”