Wadi Rum, a beleza austera do deserto

“Quando será que voltarei a ver um céu tão estrelado como este?”, pergunta-se o leitor Mário Lopes Ferreira, recordando a sua passagem pela Jordânia.

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Wadi Rum, um extenso manto de areia vermelha cortado por duas alongadas cadeias rochosas, um leito para o Sol MÁRIO LOPES FERREIRA

Silêncio. Um silêncio absoluto instalou-se assim que Salem desligou a ignição do velho mas resistente jipe. Enquanto os meus olhos vagueavam pela imensidão do deserto, senti os ouvidos contraírem-se num esforço inglório para captar algum barulho. Nunca na minha vida experimentei tamanha quietude e os sentidos acusavam a novidade. Subimos uma encosta rochosa e entrámos numa pequena cavidade em cujo chão pingava um fiozinho de água. A frescura da água e do interior da cavidade serviram de bálsamo, ajudando a enganar o calor abrasador do deserto. Só enganando os elementos pode o ser humano aqui viver.

O Wadi Rum, na Jordânia, é um vale deserto coberto por lençóis de areia ora branca, ora avermelhada e salpicado por várias formações rochosas de arenito ou granito que a natureza, com o vagar dos tempos, meticulosamente esculpiu. Habitado desde a Pré-História, por aqui passaram diversas tribos e culturas anteriores ao Islão, como testemunham os petróglifos no cânion de Khazali. No entanto, só muito mais tarde esta região entrou no imaginário ocidental. A afirmação do nacionalismo árabe no dealbar do século XX culminou na Revolta Árabe contra o moribundo Império Otomano, que desde o século XVI dominava a região.

Entre os muitos beduínos e nómadas do deserto que, sob a bandeira de Hejaz, cruzaram o Wadi Rum e avançaram triunfalmente sobre Aqaba, encontrava-se o oficial britânico T.E. Lawrence, o Lawrence da Arábia. Questionado sobre este aventureiro, Salem responde com uma indisfarçável indiferença, dizendo que foi apenas mais um entre muitos que lutaram contra os turcos. Embora não o tenha dito, é provável que, aos seus olhos, Lawrence tenha sido apenas um peão de uma das potências estrangeiras que jogaram os seus interesses no xadrez do Médio Oriente.

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O Wadi Rum é um vale deserto coberto por lençóis de areia ora branca, ora avermelhada e salpicado por várias formações rochosas de arenito ou granito Mário Lopes Ferreira

Ao final da tarde, já no acampamento, Salem serve-nos chá preto aromatizado com cardamomo, sálvia e menta, enquanto Mohammed prepara o jantar. Terminado o chá, subimos a um penedo atrás do acampamento para ver o pôr do Sol. Na linha do horizonte, um extenso manto de areia vermelha é cortado por duas alongadas cadeias rochosas, que formam um aconchegante leito no qual o Sol se vai deitando lentamente. Abaixo, o acampamento vai sendo engolido pelas sombras, enquanto os últimos raios de sol se extinguem. Tudo isto acompanhado daquele silêncio. Mas os ouvidos já não estranham.

Entre Aqaba e Wadi Rum - Vendedor de melâncias na berma da auto-estrada do deserto Mário Lopes Ferreira
Wadi Rum - Salem protege-se do sol à sombra de uma formação rochosa de arenito Mário Lopes Ferreira
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Entre Aqaba e Wadi Rum - Vendedor de melâncias na berma da auto-estrada do deserto Mário Lopes Ferreira

Depois do jantar, Salem preparou uma fogueira no meio do acampamento recorrendo a ramos secos. Ali, deitado em torno da fogueira e sob o manto escuro da noite cravejado de estrelas, senti uma enorme tranquilidade, mas também uma vertigem de desfrutar daquele momento o mais que pudesse. Se é certo que a criação da vila à entrada da área protegida de Wadi Rum permitiu a fixação dos beduínos e um maior acesso a serviços e bens de consumo, isso pouco afectou a sua forte ligação ao deserto.

E é nos serões à volta da fogueira que os beduínos partilham as suas histórias, a sua cultura e o seu profundo conhecimento do deserto. Salem conta-nos que ele e os irmãos - Mohammed e Salah - pertencem a uma família beduína proveniente da Península Arábica que se estabeleceu no Wadi Rum há cerca de 200 anos. Naquela época, estas tribos vagueavam pelo deserto vivendo da criação de cabras, ovelhas e dromedários. Hoje, uma boa parte vive na vila, onde os seus filhos vão à escola, e tem o turismo como principal fonte de rendimento.

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Wadi Rum Mário Lopes Ferreira

Numa pausa na conversa preenchida pelo crepitar da fogueira, Salem pergunta se nos importamos que reproduza música. Pretende dar a conhecer a música beduína que gosta de ouvir, ao contrário da “música da cidade, cujas letras não dizem nada”. O som do oud invade o átrio do acampamento e Salem vai trauteando a letra. Ajeito a almofada em que estou deitado e desvio o olhar da fogueira para o firmamento. Apesar de cansado, não me atrevo a cerrar as pálpebras. Os meus olhos saltam de uma estrela para outra, tentando registá-las a todas. Debalde. Quando será que voltarei a ver um céu tão estrelado como este?

Mário Lopes Ferreira

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