Conferência da biodiversidade está numa corrida contra o tempo para chegar a acordo

Os governantes chegaram à parte da reunião em Montréal em que é preciso tomar decisões sobre o quadro global da conservação da natureza da próxima década. E há uma enorme falta de consenso.

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Manifestantes junto à conferência da biodiversidade, em Montreal Reuters/CHRISTINNE MUSCHI

Está a discutir-se em Montréal, no Canadá, o documento que pretende ser o novo Quadro Global para a Biodiversidade, com metas e objectivos para travar a perda de diversidade até 2030 e iniciar a recuperação das espécies que se estão a perder a uma velocidade aterradora até 2050. Mas tem sido difícil chegar a consenso na 15.ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas para a Diversidade Biológica (COP15) e o texto em discussão está cheio de espaços em branco ou de alternativas múltiplas, à espera de que os países cheguem a uma decisão – o que tem de acontecer dentro de quatro dias.

Nesta quinta-feira começou o segmento de alto nível da conferência, que dura até dia 17 – ou seja, a parte em que estão presentes ministros dos países signatários da convenção. É agora que se espera a tomada de decisões. “Mas a grande dificuldade para os ministros é a quantidade brutal de temas difíceis que ainda estão em aberto”, disse ao PÚBLICO Francisco Ferreira, dirigente da associação ambientalista Zero, que faz parte da delegação portuguesa em Montréal, também em representação da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa.

“Ainda temos uma estrada acidentada à nossa frente”, disse Elizabeth Maruma Mrema, secretária executiva da Convenção para a Diversidade Biológica, na abertura do segmento de alto nível, citada pela Reuters.

Que metas existem?

O documento principal de negociação nesta conferência é o Quadro Global para a Biodiversidade pós-2020. Este documento propõe quatro metas para 2050 e 23 metas de acção urgente já para 2030.

A Zero selecciona alguns dos objectivos mais importantes para a próxima década: “Assegurar que pelo menos 30% das áreas terrestres e marítimas mais importantes em termos de conservação da natureza são classificadas como áreas protegidas; garantir que pelo menos 20% dos ecossistemas degradados de água doce, marinhos e terrestres comecem a ser restaurados; integrar totalmente os valores da biodiversidade em políticas, regulamentos, planeamento, processos de desenvolvimento, estratégias de redução da pobreza, contas e avaliações de impactos ambientais em todos os níveis de governo e em todos os sectores da economia, garantindo que todas as actividades e fluxos financeiros estejam alinhados com os valores da biodiversidade.”

Contudo, a discussão que tem estado a decorrer entre cientistas e negociadores desde o início da semana passada tem produzido documentos cheios de lacunas, ou com múltiplas alternativas, à espera de que seja tomada uma decisão. Até agora, só oito das 23 metas foram aprovadas para seguirem para o plenário, disse nesta quinta-feira o presidente da conferência, o ministro chinês da Ecologia e do Ambiente, Huang Runqiu​. Mesmo assim, espera-se que as negociações técnicas estejam terminadas até ao plenário de 17 de Dezembro.

É a China que preside à COP15, porque a conferência devia realizar-se naquele país; só decorre no Canadá porque se julgou demasiado difícil realizá-la na China devido à política de covid zero seguida por Pequim até há pouco tempo. Assim, o Canadá é o país anfitrião, mas a China preside à conferência.

Veja-se o que acontece com a terceira meta, relativa ao objectivo de proteger 30% das áreas terrestres e marítimas mais importantes até 2030. Actualmente, em termos globais, só 15% dos territórios terrestres e menos de 8% dos oceanos são áreas protegidas, contabiliza a Reuters.

Desafios das populações indígenas

E as populações indígenas? “Esta é uma das questões mais importantes. Se incluirmos as áreas das populações indígenas e das comunidades locais, praticamente já temos 30%. Mas se fizer isto, não tenho ambição nenhuma para 2030, já atingi a meta”, explicou ao PÚBLICO Francisco Ferreira. “Se não as incluir nas áreas classificadas, já é mais sério, porque em termos de conservação da natureza ainda é preciso fazer um esforço grande para chegar aos 30%”, diz.

Há um movimento muito forte nesta COP15 para reivindicar o reconhecimento dos direitos e do papel importante dos povos indígenas na conservação da natureza. Isso está a complicar de alguma forma a negociação? “Acho que esses direitos estão reconhecidos, todos acreditam que deve ser reconhecido esse papel. Mas baralha, digamos assim, um bocadinho os conceitos – porque há um historial da biodiversidade muito ligado apenas à conservação da natureza. E isso, obviamente, tem de evoluir, e é reconhecido por todos que tem de evoluir, mas obriga a repensar os números e as metas. E isso é complicado”, reconhece Francisco Ferreira.

“Existem também dúvidas sobre as actividades permitidas nestas áreas [protegidas]. Outros conceitos como o uso de termos como ‘soluções baseadas na natureza’ ou ‘abordagens baseadas nos ecossistemas’ também têm levantado controvérsia. O mesmo se coloca ao uso em diversos documentos do reconhecimento dos Direitos da Mãe Terra”, sintetiza um comunicado da Zero sobre a COP15, divulgado nesta quinta-feira.

“Por exemplo, nós na Europa usamos muito o termo ‘soluções baseadas na natureza’. Mas [os povos indígenas e comunidades locais] não gostam disto, preferem ‘abordagens baseadas em ecossistemas’”, relata Francisco Ferreira. “Há também a questão de reconhecer os direitos da Mãe Terra. Há países que acham que não tem sentido colocar isso nos documentos, porque é um reconhecimento abstracto. Mas há outros que acham que isso é um elemento fundamental”, exemplifica.

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O presidente da conferência, Huang Runqiu, a secretária-executiva da Convenção da Biodiversidade, Elizabeth Maruma Mrema e a directora do Programa das Nações Unidas para o Ambiente, Inger Andersen ERIC G GAGNON/@TOBROOK

Este tipo de questões é recorrente. “Isto está repartido por vários documentos e em sítios diferentes do mesmo documento e, portanto, há aqui uma complexidade muito grande”, considera Francisco Ferreira.

“O que acontece é que estamos a quatro dias do fim da conferência e, quando não há consenso entre os peritos e os negociadores, a discussão passa para os chefes de delegação. Quando são temas ainda mais críticos, passa para os ministros”, que de 15 a 17 de Dezembro estarão na COP15, explica Francisco Ferreira. “Mas a quantidade de coisas que neste momento está para ser discutida ao nível dos ministros é enorme. No fundo, os ministros vão ter de discutir o texto do acordo todo”, observa.

Com as negociações tão atrasadas, será certo que a conferência chegará ao fim na segunda-feira, 19 de Dezembro, como previsto? Ou terá de se prolongar por tempo extra, como costuma acontecer nas cimeiras das alterações climáticas (e como aconteceu em Novembro na COP27, em Sharm el Sheikh)? “Eu duvido… O problema das cedências é que se baixa sempre a ambição. Vamos ver, pode haver partes que poderão ser passadas para o futuro, por exemplo, no financiamento”, adianta Francisco Ferreira.

Acordos e desacordos

O desacordo sobre a possibilidade de criar um novo fundo para financiar acções dedicadas à conservação da biodiversidade – financiado pelos países mais ricos, para salvar a diversidade biológica, que é mais rica nos países do Sul Global – levou a que um grupo de Estados, com o Brasil à frente, ensaiassem uma saída das negociações na madrugada de quarta-feira. Após longas reuniões, as posições foram conciliadas, para que as negociações fossem retomadas, anunciou o porta-voz da Convenção sobre a Diversidade Biológica, David Ainsworth.

“Há várias ideias em cima da mesa. Uns dizem que deve ser através de uma percentagem do produto interno bruto (PIB) global, outros que defendem valores absolutos. Há quem diga que deve ser através do financiamento oficial ao desenvolvimento, mas outros defendem que deve ser mobilizado capital privado e público”, exemplifica Francisco Ferreira. Fala-se no fundo de pelo menos 100 mil milhões de dólares anuais para financiar acções de conservação da biodiversidade.

Esperar-se-ia que a União Europeia, que já é o maior doador para iniciativas de biodiversidade, arcasse com a maior parte do financiamento – os Estados Unidos não assinaram a Convenção das Nações Unidas para a Diversidade Biológica e não teriam qualquer obrigação de financiamento. Perante isto, a UE sublinhou que seria importante encontrar outras fontes de financiamento, como empresas privadas, bancos multilaterais, filantropos, salienta a Reuters.

“É completamente irrealista esperar conseguir 100 mil milhões de dólares anuais [cerca de 94 mil milhões de euros] apenas a partir de fundos para o desenvolvimento”, salientou à agência noticiosa o comissário europeu para o Ambiente, Virginius Sinkevicius. “Os países não devem prometer mais do que aquilo que são capazes de cumprir”, afirmou.

A União Europeia tem sido acusada por algumas organizações, como a Greenpeace e a Avaaz, de estar a recusar a ideia deste fundo, e de estar a tentar diluir a ideia da protecção de 30% das áreas mais importantes para a conservação da natureza até 2030, prevendo a possibilidade da existência de indústrias extractivas, por exemplo. A UE nega essa perspectiva. “O problema de todos os países é que não se pode olhar para as coisas isoladamente, tem de se ver como um todo. A UE ou qualquer qualquer outro país não vai ser flexível numa área, se não tiver contrapartidas das outras, porque às tantas diz: ‘OK, eu cedo aqui, mas o que é que eu ganho?’”, sintetiza Francisco Ferreira.

Já a posição de Portugal nestas negociações surge concertada com a União Europeia, explica. “Portugal faz parte de uma coligação de elevada ambição em que estão vários países europeus. Está em algumas áreas importantes”, diz. “Mas nenhum dos países da UE tem aqui um papel isolado, obviamente.”