No Alentejo, o dilúvio foi um “rio atmosférico” que caiu do céu

Massa de ar húmido causou chuvas intensas e cheias no Alentejo. Num só dia caiu mais chuva na vila de Sousel do que aquela que costuma cair num mês inteiro em todo o distrito de Portalegre.

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As chuvas fortes têm causado cheias por todo o país e o distrito de Portalegre é um dos mais afectados Guillermo Vidal

Não costumamos pensar em chuva quando pensamos no Alentejo, mas esta terça-feira choveu e choveu muito nesta região portuguesa, que por causa do dilúvio ficou inundada em vários pontos. A culpa é de um fenómeno meteorológico que pode ser designado como “rio atmosférico”. Uma grande massa de ar húmido encheu as nuvens de chuva à medida que elas iam passando do litoral para o interior. O resultado foi um temporal que, no Alentejo, foi especialmente grave na vila de Sousel (Portalegre). Aqui, caiu mais chuva em 24 horas do que aquela que, em circunstâncias normais, demoraria todo o mês de Dezembro a cair no distrito de Portalegre (cujos municípios constituem o Alto Alentejo).

Quem o diz é Luís Mestre, fundador da associação amadora de meteorologia MeteoAlentejo, que tem 55 estações meteorológicas espalhadas pela região. O responsável conta ao PÚBLICO que, esta terça, a estação em Sousel registou a queda de 147,3 milímetros (mm) de chuva — ou 147,3 litros de chuva por cada metro quadrado de território.

A MeteoAlentejo baseia-se em dados das três estações meteorológicas que o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) tem no distrito de Portalegre para perceber quais são as médias mensais de precipitação no Alto Alentejo. Para o mês de Dezembro, a média, referente ao período de 1971-2000, é de 136 milímetros, diz Luís Mestre, que vai mais longe. “Se formos à janela temporal 1981-2010, a média é ainda mais baixa: 128,3 milímetros.”

Sousel e Marvão (135,6 mm) foram as duas localidades alentejanas que esta terça bateram a marca dos 128,3 mm. Outras regiões onde o dilúvio foi muito expressivo incluem Arronches (114 mm), Castelo de Vide (115,8 mm), Fronteira (114,3 mm) e Monforte (106,6 mm).

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Estes são os sítios onde as estações meteorológicas da MeteoAlentejo registaram números acima dos 100 mm. Para estas, os valores deste marcante 13 de Dezembro constituem recordes diários, mas importa dizer que 51 das 55 estações da associação amadora de meteorologia foram instaladas nos últimos dois anos, pelo que não há uma imensidão de registos.

No entanto, a geógrafa Maria José Roxo, professora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, garante serem extremamente raros os episódios em que a chuva é tão torrencial no Alentejo que a barreira dos 100 mm diários é ultrapassada.

A especialista em seca e desertificação diz ao PÚBLICO que, entre 1940 e 2021, só por três vezes é que a estação meteorológica de Mértola — distrito de Beja, região do Alentejo — registou a queda de 100 ou mais milímetros de chuva num só dia (em 1945, 1989 e 2006). Com isto se percebe quão raro é o fenómeno ocorrido esta terça.

“Má gestão do território”

Fazendo referência ao facto de as cheias terem afectado várias estradas alentejanas, a geógrafa diz que, na sua óptica, os estragos decorrentes do temporal são não só um problema de alterações climáticas, mas também e se calhar sobretudo um problema de “má gestão do território”.

“Se as obras que são feitas tivessem em conta estes possíveis episódios extremos, se houvesse cuidado, haveria danos, sim, mas não nestas proporções”, afirma, dizendo que, quando se constroem estradas, há que se pensar em garantir um escoamento célere das águas. “Em Portugal, preferimos sempre aquilo que custa menos, mas, ironicamente, depois é muito mais custoso reconstruir.”

Falando sobre a relação do dilúvio com os terrenos agrícolas, Maria José Roxo diz que em Novembro, quando esteve no Alentejo a fazer trabalho de campo, viu “vastas áreas na margem esquerda do [rio] Guadiana já lavradas”. “Quando temos alguma chuva após uma seca longa — e em Outubro e Novembro, depois da seca do Verão, choveu um pouquinho —, a tendência dos agricultores é lavrar um pouco mais do que o normal para a altura do ano. Há aquela ideia de compensação: como durante muito tempo não puderam semear, agora vão aproveitar para semear a dobrar”, assinala.

Em que medida é que isto é problemático? A cobertura vegetal permite a absorção de água por parte do solo. Quando muita desta cobertura é retirada, de modo a que os terrenos florestais sejam convertidos em terrenos agrícolas, o risco de inundações cresce.

Maria José Roxo diz que, por causa da precipitação, o nível de água nas barragens aumentará, mas assinala que, como “as chuvadas arrastaram o solo”, os cursos de água ficaram repletos de areias e argilas. “Vamos ter mais água nas barragens, sim, mas esta não é uma água de qualidade”, sublinha.

O que é um “rio atmosférico”?

“Não é habitual chover desta forma num território já tão afastado do litoral. Estamos perante um fenómeno meteorológico que se designa como um rio atmosférico”, confirma ao PÚBLICO José Luís Zêzere. O professor universitário, que foi coordenador da base de dados Disaster — em que se analisou o impacto das cheias em Portugal continental —, explica: “Normalmente, quando temos chuva, ela vem sempre do lado do mar (ou de Oeste, ou de Sudoeste, ou de Noroeste). É desse lado que as massas de ar vêm carregadas de humidade. Normalmente, quando este ar perturbado chega ao continente, ele descarrega a maior parte da sua humidade no seu primeiro trajecto no continente. É por isso que o litoral é tipicamente mais chuvoso do que o interior. Nestas situações que temos agora, isso não acontece, devido ao efeito do rio atmosférico”, começa por dizer.

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Estradas cortadas no distrito de Portalegre Nuno Veiga/LUSA

“A humidade continua a entrar nas altas camadas da atmosfera, o que significa que as nuvens continuam a receber humidade por cima, mesmo quando se deslocam para o interior.” Isto, por seu turno, “significa que continuam a ter água para precipitar”. “Daí que haja chuvadas tão grandes lá longe do litoral”, diz José Luís Zêzere. “É incrível, é impressionante.”

Segundo o Comando Distrital de Operações de Socorro (CDOS) de Portalegre, o temporal de terça-feira causou 203 inundações e 24 desalojados no Alentejo, sendo que foi no distrito de Portalegre que o número de ocorrências foi mais elevado (184).

Efectivamente, a precipitação foi mais intensa no Alto Alentejo, mas em Vila Viçosa, no Alentejo Central, também choveu imenso, por exemplo: em 24 horas, caíram na região 80,7 mm de chuva, segundo dados da MeteoAlentejo. com Claudia Carvalho Silva