Lisboa viveu esta terça-feira o seu dia de Dezembro mais chuvoso de sempre. Quem o garante é o climatologista Ricardo Deus, do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA). Entre a noite de segunda e o início da tarde desta terça, a chuva marcou de forma indelével as rotinas da capital. “Este é o evento de precipitação mais importante dos últimos anos na zona de Lisboa”, confirma Miguel Miranda, presidente do IPMA.
Olhemos para alguns números que permitem verificar que este temporal bateu recordes. Entre as 15h de segunda e as 15h desta terça, a estação meteorológica do Instituto Geofísico, em Lisboa, deu conta da queda de 134,6 milímetros (mm) de chuva, ou 134,6 litros de chuva por cada metro quadrado de território. Esta estação nunca tinha registado um valor diário tão elevado. Para trás ficam os 118,4 mm de 18 de Fevereiro de 2008, dia de um grande dilúvio em Lisboa.
Noutras estações meteorológicas na capital, os valores são similarmente expressivos. Entre as 16h de segunda e as 16h de terça, a estação da Gago Coutinho registou a queda de 128,6 mm de chuva. Na estação da Tapada da Ajuda, os números, entre as 15h de segunda e as 15h de terça, chegaram aos 121,3 mm.
São valores muito elevados, que, pelo menos em um dos dois casos, por pouco não são históricos. Na estação da Tapada da Ajuda, o recorde diário, que também pertence ao já mencionado 18 de Fevereiro de 2008, está fixado nos 122,5 mm. Foi por 1,2 mm que não houve um destronamento.
Na estação da Gago Coutinho, o valor recorde — que, para não variar, remete para o dia do temporal em 2008 — é mais elevado: 143,7 mm.
Ainda esmiuçando os números, foi entre a noite de segunda e o início da manhã de terça que choveu mais intensamente. Se olharmos para o que nos mostra a estação do Instituto Geofísico, por exemplo, vemos que 113 dos 134,6 mm de chuva caíram entre as 20h de segunda e as 8h de terça. As estações da Gago Coutinho (107 dos 128,6 mm) e da Tapada da Ajuda (102,7 dos 121,3 mm) contam histórias idênticas.
Se na noite da última quarta-feira (7 de Dezembro) Lisboa viveu um evento “extremo, mas muito concentrado no tempo”, marcado por “duas a três horas de precipitação muito intensa”, agora experimentámos um fenómeno meteorológico que, não tendo sido “tão intenso hora a hora”, teve uma duração maior, explica ao PÚBLICO Nuno Lopes, da Divisão de Previsão Meteorológica e Vigilância do IPMA. No evento da semana passada houve sobretudo “intensidade”, agora houve sobretudo “persistência”, resume.
A chuva intensa, que colocou quase todos os distritos do país em alerta laranja (apenas Bragança fugiu à regra), foi provocada por um movimento convectivo na atmosfera — massas de ar quente contendo muita água ascenderam a camadas superiores da atmosfera, onde o frio levou a um processo de condensação, após o qual veio a precipitação — e teve um impacto assinalável na vida dos portugueses, sendo que quem vive em Lisboa teve uma terça-feira particularmente difícil.
Na capital, foi preciso encerrar escolas e estradas, houve perturbações em matéria de transportes e as cheias regressaram à paisagem. O caos foi tal que, de manhã, o Hospital Amadora-Sintra teve de, durante umas horas, solicitar o encaminhamento de doentes urgentes para outros hospitais.
Ricardo Deus considera que, embora a “história de Lisboa” tenha “muitos episódios de precipitação forte e cheias”, fenómenos meteorológicos com um impacto mais significativo, como o actual, estão a ficar mais regulares. “Fevereiro de 2008 não foi há assim tantos anos”, diz, afirmando que foram quatro as estações meteorológicas que registaram “extremos absolutos de precipitação diária” neste 13 de Dezembro — se já falámos da estação do Instituto Geofísico, resta olhar para os números no Barreiro (onde os 83,4 mm de chuva batem o anterior recorde de 68,3 mm, em Dezembro de 1978), em Almada (81,9 mm; o recorde era de 73,7 mm, em Janeiro de 2004) e em Mora (98,8 mm; o recorde era de 81,5 mm, em Novembro de 1983).
“Estamos a ultrapassar uma barreira. A fasquia está a ficar cada vez mais alta”, salienta Ricardo Deus.
Poderemos sair da seca — mas sair assim não é ideal
O climatologista afirma que, após este fenómeno de precipitação intensa — que, “ao contrário da ideia que foi passada, não foi concentrado na capital; alargou-se ao resto do país”, segundo frisa Miguel Miranda —, deveremos sair da situação de seca meteorológica.
Segundo o mais recente boletim meteorológico do IPMA, publicado esta terça, as regiões Norte e Centro do país já não estavam em seca no final de Novembro. O mês acabou com quase 9% (8,8%) do território nacional em seca severa, 11,6% em seca moderada e 7,4% em seca fraca. Em 39,5% do território, a situação era “normal”.
Os dias de precipitação intensa em Dezembro poderão ajudar a combater o cenário de seca, mas Ricardo Deus não deixa de salientar que chover num curtíssimo espaço de tempo o que costuma ou deveria chover ao longo de um mês não é exactamente um bom cenário. “Quando a chuva é bastante intensa em janelas temporais muito curtas, o solo fica saturado e não consegue reter a água. Daí as cheias”, diz.
Felizmente, “não se prevêem fenómenos semelhantes nos próximos dias”, diz ao PÚBLICO Miguel Miranda. “Vamos agora entrar num período de acalmia, vamos baixar os níveis de alerta”, diz, sem deixar de salientar que ainda há “algumas situações mais graves na região da raia”.
De acordo com Ricardo Deus, deverá “continuar a ocorrer precipitação nas próximas semanas”, mas, segundo o IPMA, deveremos viver apenas “situações de aguaceiros”. “As previsões dizem que, nos próximos dias, deverá chover mais do que aquilo que é normal para a altura do ano, mas isto não quer dizer que vai haver mais um temporal como este”, assinala.
Quão chuvoso foi este 13 de Dezembro em comparação com o famoso 18 de Fevereiro de 2008? Como é que, em termos da dimensão do fenómeno meteorológico, esta terça-feira será lembrada na história de Lisboa? São questões para as quais deverá existir uma resposta em breve. “Nos próximos dias vamos fazer contas, analisar os dados”, refere Miguel Miranda, para quem “a altura da meteorologia está a acabar”. “Agora é o tempo da engenharia, da geografia, das ciências sociais, para assegurar que eventos com esta gravidade” não voltam a acontecer, diz.
Este tem sido um Dezembro de muita precipitação — e, apesar de estarmos quase no Inverno, tem chovido mais que o normal. Segundo o IPMA, a estação meteorológica da Gago Coutinho já tinha registado, até ao dia 11, a queda acumulada de 130,33 mm de chuva. A média mensal, que remete para o período 1971-2000, situa-se nos 121,8 mm.
Esta terça, António Costa foi questionado pelo PCP e pelo PAN sobre se o Governo mobilizará “recursos” e “meios” para ajudar as “vítimas das cheias” através do fundo de solidariedade da União Europeia. O primeiro-ministro lembrou que não é possível accionar este apoio sem apurar o valor dos danos causados, mas garantiu que o executivo o fará quando estiver terminado o levantamento dos prejuízos, na eventualidade de estes responderem às condições do fundo europeu. com Clara Barata