O aumento do custo de vida e dos preços dos alimentos está a contribuir para o aumento do abandono de animais de estimação. A tendência verifica-se de norte a sul do país e faz com que algumas associações de defesa animal, lotadas e com falta de recursos para tantos pedidos, já não consigam aceitar ou resgatar mais animais.
Entre Janeiro e Setembro deste ano, os preços da ração e de outros produtos para cães e gatos aumentaram 200%, de acordo com dados do KuantoKusta, enviados ao P3. Nos últimos 30 dias, as rações estão um euro mais caras, acrescenta a análise da empresa.
O problema torna-se cíclico: se, por um lado, há tutores que se vêem obrigados a abdicar do seu animal porque já não conseguem suportar os custos da ração e despesas médico-veterinárias, as instalações das associações e centros de recolha ficam com mais despesas ao final do mês.
O Centro de Recolha Oficial de Animais de Matosinhos (CROAM) é um destes casos. Neste momento, alberga 220 cães e 17 gatos, divididos por duas instalações, e dificilmente consegue aceitar mais. Liliana Sousa, chefe de divisão do gabinete médico veterinário, explica que “é necessária uma ginástica diária para a gestão das jaulas”, para que, pelo menos, seja possível responder às situações mais urgentes.
No caso do CROAM, o número de animais abandonados tem sido sempre superior ao das adopções. A inflação está a contribuir para esta tendência, mas a veterinária recorda que o problema começou em 2020, no início da pandemia, quando o país entrou em confinamento e várias pessoas ficaram sem trabalho. “Assistimos a jovens a terem de regressar a casa dos pais, famílias a terem de mudar de emprego e de cidade e, em muitos destes casos, já não haveria lugar para o animal”, recorda.
Em relação à crise actual, são cada vez menos os visitantes que procuram o centro para adoptar um cão ou gato e cada vez mais as famílias que “assumem não ter condições para continuar com a detenção dos animais” e acabam por os entregar voluntariamente no centro ou abandoná-los, revela Liliana.
Também Margarida Saldanha, da direcção da União Zoófila, confirma que a associação tem recebido vários pedidos de ajuda de quem encontra animais abandonados na rua, incluindo cadelas com ninhadas. “Não podemos dar resposta a toda a gente, mas tentamos sempre”, justifica. Sofia Róis, directora executiva da Animais de Rua, adianta, citada pela Lusa, que o abandono animal “aumentou 50%” desde o regresso ao trabalho presencial. Na mesma linha, acrescenta, o número de animais que a associação ajudou este ano e em 2021 “é duas vezes maior” ao registado até à data.
Segundo dados da GNR e PSP, divulgados pelo Jornal de Notícias, os valores de abandono animal já superam os números registados em 2021. Só este ano, foram abandonados 637 animais, na grande maioria cães, ao passo que no ano passado foram contabilizados 595.
Apesar de serem elevados, os números não surpreendem a provedora do Animal, Laurentina Pedroso. Segundo a mesma, “são apenas a ponta do icebergue”. “Os animais abandonados são aos milhares, não são às centenas. Portanto, o que estamos a dizer é que as autoridades policiais reportam a mesma tendência que as associações e os centros de recolha estão a observar”, adianta.
“Estes dados são importantes porque nos confirmam uma tendência, mas os números são muito baixos face àquilo que sabemos que é o panorama nacional”, acrescenta.
Os dados oficiais revelam ainda que, em 2021, os centros de recolha receberam quase 44 mil animais (43.400), mais 12 mil do que em 2020. Destes, apenas 25 mil foram adoptados e cerca de dois mil foram eutanasiados. Os valores são elevados, mas os números reais são ainda maiores, uma vez que estes dados não incluem os animais resgatados por associações.
Regressando à realidade, as associações de defesa animal, em Oeiras, a Liga Portuguesa dos Direitos dos Animais (LPDA) está completamente lotada. Esta organização, que alberga cães, gatos, caprinos, suínos e animais exóticos, conta que “muito dificilmente” consegue ter capacidade financeira para cuidar dos 200 animais. “Com a ajuda de voluntários, padrinhos e campanhas de vendas de pequenos artigos, vamos conseguindo angariar alguns fundos”, revela a direcção em resposta ao P3, acrescentando que as adopções são cada vez menos e os pedidos de ajuda cada vez mais.
A provedora do Animal reconhece que as pessoas já não descartam um animal só porque sim, mas porque “se vêem num momento de aflição, em que há aquela sensação de impotência e que a entrega é o último recurso e é melhor para o animal”.
“Quem gosta do animal e o considera importante na sua vida não o entrega com ligeireza. Mas hoje temos de entender que as entregas dos animais também estão associadas não só aos custos com a alimentação, mas também aos custos médico-veterinários, em que as despesas são muito grandes, e as famílias se vêem sem condições para ajudar o animal”, defende Laurentina Pedroso.
Sofia Róis reconhece tudo isto, mas defende que “não há nenhuma desculpa para o abandono animal”, escreve a Lusa. A inflação “tem assustado muito as famílias e os primeiros a ser descartados, como sempre, são os animais”, acrescenta, citada pela agência de notícias.
A LPDA tem assistido a um aumento de pedidos de entrada de animais por parte de donos que não os conseguem manter. Nestes casos, e como neste momento já não é possível receber mais animais, a associação tenta ajudar com a “alimentação para os animais e cuidados veterinários”, explica.
No caso dos animais abandonados e recolhidos pela organização, a lei da obrigatoriedade do microchip em todos os cães, gatos e furões, que entrou em vigor no dia 25 de Outubro, não está a ajudar a minimizar o problema, uma vez que a maioria não tem chip, tratando-se de animais mais velhos e com problemas de saúde.
“Verificamos um aumento do número de pessoas que adoptaram irresponsavelmente animais nos centros de recolha oficiais e, como estes não os recebem de volta, tentam colocá-los em associações”, acrescenta a LPDA.
No CROAM, estes casos também acontecem, mas com animais que nunca estiveram no centro. “Dificilmente alguém admitirá junto dos serviços que o motivo de entrega do animal é porque se ‘fartou dele’, mas são várias as situações onde percebemos que nunca houve uma ligação emocional”, aponta Liliana Sousa.
Custos para as associações “disparam"
Com a entrega (ou abandono) do animal, os donos deixam de ter encargos, mas a balança começa a pesar para o lado das associações, que assumem ter dificuldade em tratar de todos os animais. “Temos pessoas que adoptaram animais e comentam que é assustador o valor de uma lata pequena de paté para gato, que custava 0,53 cêntimos e aumentou para o dobro”, revela Margarida Saldanha.
O problema afecta todos, mas quando a instituição é mais pequena e tem poucos apoios ou nenhuns, como é o caso da Plataforma ProAnimal, em Vila Real, torna-se (ainda) mais difícil assegurar a qualidade de vida dos animais resgatados.
Helena Gomes, presidente da associação, conta que a Proanimal não tem espaço físico e que depois de resgatar os animais depende exclusivamente das famílias de acolhimento temporário, que se voluntariam a ficar com os cães e gatos durante o tempo que for necessário até serem adoptados. Ainda assim, há uma condição: os custos ficam a cargo da associação.
Já a LPDA, que tem dois abrigos, gasta entre 700 e mil euros por mês em ração e mais de mil euros em cuidados veterinários. No CROAM, os valores são superiores, mas também variam, sendo que, neste momento, a autarquia de Matosinhos gasta aproximadamente 2750 euros por mês com a ração e 2900 em cuidados veterinários.
“Há animais que comem muito mais do que outros e há animais que entram com o estado de saúde bastante debilitado e a precisar de cuidados médicos diários, o que por si só faz aumentar os gastos mensais”, explica Liliana Sousa, acrescentando que no caso dos cães e gatos adultos e geriátricos “os custos de maneio disparam”.
Na União Zoófila, que tem cerca de 600 animais, a grande maioria seniores, os valores mensais gastos em medicação rondam os três mil euros, revela Margarida Saldanha. O P3 também contactou a Casa dos Animais de Lisboa (CAL), para perceber os valores mensais que a autarquia gasta com os animais deste centro, mas não obteve resposta em tempo útil.
A instabilidade financeira persiste, mas há um ponto positivo que as associações contactadas pelo P3 destacam: apesar do aumento do custo de vida, há quem continue a contribuir com donativos, e isso vai ajudando. O CROAM, que conta com a ajuda de empresas parceiras, não costuma receber donativos de particulares, mas sempre que tal acontece encaminha “a maior parte para associações de animais sem fins lucrativos”, salienta Liliana Sousa.
Para minimizar o problema do abandono animal, Margarida Saldanha sugere que as câmaras municipais e os centros de recolha (CRO), que recebem dinheiros públicos, realizem campanhas de esterilização de animais. “Temos o CRO de Arganil que, em Novembro, fez esterilizações gratuitas para quem era da região e isso é um exemplo”, recorda, acrescentando que a diminuição do IVA nas rações cujo valor “aumentou brutamente” e facilidade nos cuidados médico-veterinários também ajudariam.
“Sabemos que a dinâmica socioeconómica oscila, passámos por essa experiência no ano passado, mantém-se neste ano e não sabemos como vai ser a seguir. As alternativas existem, mas é preciso pô-las em prática”, conclui.