A batalha das nossas vidas e o Fundo Amazônia
As palavras duras com que António Guterres, o ex-primeiro ministro de Portugal e atual secretário-geral das Nações Unidas, abriu a COP27 no Cairo precisam ressoar em nossas cabeças, diante da grande ameaça que atinge todos os povos em todos os continentes. O experiente líder europeu afirmou que "estamos na batalha das nossas vidas e estamos a perdê-la. As emissões de gases com efeito estufa continuam a aumentar”. Em tom ainda mais dramático, alertou: “Estamos numa autoestrada para o inferno climático e temos o nosso pé no acelerador.”
A intensificação de desastres climáticos quebra as últimas resistências dos recalcitrantes em reconhecer a gravidade do aquecimento global. Neste cenário tão grave, o Brasil joga um papel de grande relevância, ao abrigar a maior floresta tropical do planeta.
A devastação dos últimos anos impressiona pelos números. Em 2021, as medições realizadas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostraram que houve um incremento de 22% na taxa de desmatamento da Amazônia em relação ao ano anterior, atingindo a assustadora área de 13.235 km². O resultado acompanhou a tendência de crescimento observada desde 2015, quando a taxa anual foi de 6207 km², ou seja, menos da metade do que ocorreu no ano passado.
Para enfrentar o grande desafio ambiental e para preservar a principal floresta do planeta, um dos valiosos instrumentos que voltaremos a ter é o Fundo Amazônia, gerido pelo BNDES. A partir de 2019 interrompeu-se as atividades do fundo, permanecendo apenas a gestão dos projetos antes aprovados. A postura do Governo brasileiro obrigou a Noruega e a Alemanha a suspenderem os aportes financeiros a que haviam se comprometido desde 2008, quando houve a criação do Fundo, a partir de um clamor levado aos líderes mundiais pelo então Presidente Lula.
Agora, logo depois do resultado da eleição presidencial, os dois países já anunciaram que estão prontos para voltar a participarem de uma experiência internacional bem-sucedida de preservação de florestas tropicais.
De 2009 até agora foram apoiados 102 projetos, operados por entidades da sociedade civil, órgãos de governo, universidades e um projeto internacional em parceria com a OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica), com sede na Guiana. Os recursos de apoio atingiram, em 2021, o total de €328 milhões e as doações recebidas foram de €618 milhões. Cerca de 93,8% deste montante foi oriundo da Noruega. A Alemanha aportou 5,7% e a Petrobras respondeu por 0,5%. Os projetos foram aprovados a partir de uma rigorosa análise técnica e a utilização dos recursos foi auditada e avaliada tecnicamente.
O Fundo possui uma governança exemplar, com dois Comitês, um destinado a definir as suas diretrizes e outro voltado para atestar o cálculo das reduções de emissões de gases de efeito estufa relacionados com o desmatamento. Participam representantes dos três níveis de governo, membros da sociedade civil e técnicos especialistas.
O singular exemplo do Fundo Amazônia para o mundo recomenda que sejam feitas revisões que o fortaleçam e o tornem mais resistente a movimentos hostis, tal como ocorreu a partir de 2019.
Uma nova institucionalidade deve contemplar uma participação direta em sua governança de representantes do governo e da sociedade civil de todos os países da América do Sul que abrigam o bioma amazônico em seus territórios. Essa reordenação institucional deve ocorrer sem gastos financeiros e técnicos excessivos em atividades-meio e nem a de se abrir mão do rigor técnico na análise dos projetos.
No âmbito operacional, também é preciso recomendar revisões. A trilha da análise dos projetos precisa ser otimizada. É indispensável agilizar ações efetivas que enfrentem a dura realidade de hoje, muito mais grave do que aquela de 2008, quando da criação do Fundo. A prioridade deve ser para projetos com alto impacto na recuperação de áreas degradadas, na gestão de florestas públicas e no controle, monitoramento e fiscalização ambiental, reprimindo duramente atividades ilícitas.
É fundamental proteger os grupos sociais mais carentes que, de outra forma, restam vulneráveis aos detratores da floresta.
A captação de recursos para o Fundo Amazônia é condicionada à redução das emissões de carbono oriundas do desmatamento. Essa condição pode ser aprimorada e tornada ainda mais transparente, de forma a canalizar adicionais contribuições mundiais e permitir aumento de escala nas suas ações.
A rica experiência do fundo oferece condições para que o mundo empresarial também se integre a ele. O selo ESG, tão em moda nos ambientes financeiros assépticos, tem uma oportunidade de ser confirmado na prática pelas empresas que assumiram compromissos com o planeta e com as pessoas. O Fundo Amazônia é uma oportunidade especial para isso.
Guilherme Narciso de Lacerda e Élvio Gaspar são ex-diretores do BNDES e responsáveis pelo Fundo Amazônia no período de 2008 a 2015