Povos indígenas reclamam estatuto especial na cimeira sobre biodiversidade

António Guterres salientou que “os direitos humanos têm de estar no centro da defesa da diversidade biológica”, na conferência em que se negoceia um novo Quadro Global da Biodiversidade.

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Povos indígenas brasileiros com trajes tradicionais Reuters/Adriano Machado

Os povos indígenas, guardiões dos territórios com maior biodiversidade do planeta, estão a criticar o processo de negociação de um novo Quadro Global da Biodiversidade, que está a juntar até 19 de Novembro 193 países em Montreal. A crítica começa pela forma como o documento proposto fala em áreas protegidas e, por isso, estes povos pedem que o texto seja modificado para reconhecer uma nova categoria, a dos territórios indígenas.

“Os povos indígenas não se sentem identificados nem com as áreas protegidas nem de conservação, tal como são definidas na Convenção [Quadro das Nações Unidas para a Diversidade Biológica]. Estas áreas são geridas e regulamentadas pelos Estados, mas os povos indígenas têm governos e instituições próprias, que souberam manter o equilíbrio dos ecossistemas”, explicou Lena Yanina, da Coordenação de Organizações Indígenas da Bacia Amazónica (COICA, na sigla em espanhol), que representa 511 povos indígenas de nove países, numa conferência de imprensa online.

Não é que o documento em discussão na Cimeira da Biodiversidade (COP15) em Montreal seja rejeitado pelos povos indígenas. “Reconhece os direitos, conhecimento, inovações e práticas dos povos indígenas e das comunidades locais, incluindo a sua participação efectiva no processo de tomada de decisões”, disse ao PÚBLICO, por e-mail, Joji Carino, do povo Ibaloi-Igorot, da região de Cordillera nas Filipinas.

Mas o documento continua a ter muitos espaços em branco, a serem preenchidos consoante o desfecho das negociações. “Durante estes dias finais das negociações intergovernamentais, haverá menos tempo e espaço para serem ouvidas as vozes dos povos indígenas e comunidades locais. E é ainda mais importante que os Estados signatários da Convenção apoiem as nossas propostas”, acrescentou Carino, que é membro do Fórum Indígena Internacional sobre Biodiversidade, que defende que uma abordagem baseada nos direitos humanos é crucial para que o novo Quadro Global de Biodiversidade tenha sucesso.

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Lena Yanina, Coordenação de Organizações Indígenas da Bacia Amazónica UN Biodivesity

Defender a natureza e direitos humanos e pagar com a vida

O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, defendeu isso mesmo, numa conferência de imprensa em Montreal. “Todos os contactos que tive com a sociedade civil tornaram claro que os direitos humanos têm de estar no centro da defesa da biodiversidade”, afirmou. Recordou os “defensores da natureza e dos direitos humanos”, que tantas vezes pagam com a própria vida pela sua luta, o que considerou “inaceitável”.

As negociações do novo quadro da biodiversidade, que pretende criar as regras para travar a perda de diversidade biológica até 2030 e iniciar a regeneração dos ecossistemas até 2050, nem sempre estão a seguir pelos melhores caminhos, denunciou outra organização de povos indígenas, a Coligação Global da Floresta. Numa conferência de imprensa na COP15, alertou contra as “falsas soluções”, que têm muito que ver com os lobbies económicos.

“Estamos preocupados com o domínio crescente das empresas sobre o processo de negociação da Convenção da Biodiversidade, que se expressa tanto na acção directa de lobbies durante a COP15, como em influências indirectas sobre todo o processo”, disse ao PÚBLICO, por e-mail, Simone Lovera, uma das directoras da Coligação Global da Floresta. “O resultado é que há uma forte ênfase no apelo à revelação voluntária pelas empresas dos impactos que têm sobre a biodiversidade, em vez de se elaborarem regulamentos ambientais rigorosos para lidar com esses impactos”, explicou.

É preciso ainda ter em atenção que expressões como “natureza positiva”, que têm uma definição ampla, “sugerem que se pode compensar a perda de biodiversidade com projectos para conservar ou restaurar a biodiversidade noutro local”, diz Simone Lovera. “Mulheres e povos indígenas, por exemplo, podem sofrer duas vezes: com o impacto da destruição das florestas ou ecossistemas em que vivem (ou o clima) e os projectos de compensação, que muitas vezes assumem a forma de fortalezas de conservação, que violam os seus direitos”, frisou.

Isto a que Simone Lovera chama “fortalezas de conservação” pode ser uma grande fonte de conflitos. Joji Carino dá um exemplo disso com o que está a acontecer com o povo Maasai, na Tanzânia, que viu as suas terras serem transformadas numa reserva de caça, na qual foram dados extensos privilégios à família real do Dubai. “Agora, as armas estão a virar-se contra nós, as pessoas que tomaram conta do ambiente”, lê-se numa declaração da comunidade Maasai de Loliondo, apresentada na ronda de negociações do novo Quadro Global de Biodiversidade que decorreu em Nairobi, no Quénia, em Junho.