Biodiversidade para quê? “Porque precisamos das outras espécies para sobreviver”
Vem aí a Cimeira da Convenção da Diversidade Biológica, em Montreal, no Canadá, de 7-19 de Dezembro. Deverá aprovar uma estratégia para enfrentar a maior vaga de extinções desde a era dos dinossauros.
Adoptar um novo quadro mundial para travar a perda de biodiversidade até 2030 e, depois, começar a recuperar os ecossistemas até 2050 são os grandes objectivos da COP15 – a Cimeira das Partes da Convenção da Diversidade Biológica das Nações Unidas, que decorre de 7 a 19 de Dezembro em Montreal, no Canadá. “Temos de ter consciência de que sem as outras espécies não vamos conseguir sobreviver”, alerta Jorge Paiva, botânico e ecólogo da Universidade de Coimbra.
“Toda a nossa comida é de origem animal ou vegetal. Não comemos pedras. Comemos outros seres vivos. Por isso, sem as outras espécies, não vamos ter comida, que é o nosso combustível. Não vamos ter medicamentos: 85% são de origem vegetal. O nosso vestuário, o petróleo bruto, o crude, resulta de transformação de florestas que foram soterradas. Sem os outros não vamos conseguir sobreviver”, sublinha Jorge Paiva.
O problema é que passa despercebido. “Ninguém está convencido disso”, diz, desiludido, Jorge Paiva. “As pessoas ainda pensam assim: ‘O que é que me interessa se o urso desapareceu? Até nos fazia mal. O que é que me interessa que os animais e plantas estejam em vias de extinção?’”, ilustra.
“Vou dar-lhe um exemplo”, diz, para responder à pergunta. “Há uma planta que era comum cá em Portugal e que esteve em vias de extinção, mas agora é protegidíssima, o teixo. Tanto havia que há muitos topónimos e patronímicos derivados do teixo: Teixoso, Teixeira, Teixeiro, Teixedo. Mas é uma planta altamente tóxica, porque produz um alcalóide que é letal para os animais”, conta.
“Mas os medicamentos são todos produtos químicos tóxicos. E do teixo já se faz cerca de meia dúzia de medicamentos para o tratamento de muitos tipos de cancros, começou com o cancro da mama. De maneira que se o teixo tivesse desaparecido, não teríamos descoberto estes tratamentos. Hoje é proibido cortar o teixo”, relata Jorge Paiva.
Difícil de explicar
A história do teixo serve para explicar o que se vai passar na COP15, porque é que é importante defender a biodiversidade – há um milhão de espécies em risco de extinção, segundo um relatório da Plataforma Intergovernamental de Política de Ciência sobre Biodiversidade e Serviços do Ecossistema (IPBES, na sigla em inglês).
E também porque é mais difícil apercebermo-nos desta crise, que corre silenciosamente. “As pessoas não compreendem para que é que serve a biodiversidade. Não conseguem visualizar que as coisas não têm de ‘servir para’”, diz Maria Amélia Martins-Loução, investigadora no Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Globais da Faculdade de Ciências de Lisboa (cE3c), e presidente da Sociedade Portuguesa de Ecologia.
“Enquanto no caso das alterações climáticas as pessoas começam a sentir na pele [os seus efeitos], há estes eventos catastróficos, no caso da biodiversidade as pessoas não sentem faltas. Continuam a ter comida na mesa. Continuam a ter os bens considerados necessários. Se querem alguma lenha ou outra coisa para acender uma fogueira, têm-no à mão ou vão comprar no supermercado. Portanto, não há uma valorização desses bens”, explica Maria Amélia Martins-Loução. E são muitas as espécies selvagens que usamos: cerca de 50 mil para as necessidades diárias, segundo o IPBES.
A COP15, em Montreal, pretende actualizar o Plano Estratégico para a Biodiversidade 2011-2020, também conhecido como as metas de Aichi. “Praticamente não foram cumpridas. Foi um descalabro total”, diz Maria Amélia Martins-Loução. “Uma das metas em que não se fez nada foi a implementação de estratégias para comunicar e para alertar a população para o perigo que se corre perante esta inacção de nada conservar, da falta de educação ambiental”, diz a investigadora.
“Entretanto, a perda de diversidade vai aumentando, com a agravante das alterações climáticas, que não beneficiam em nada populações animais ou vegetais mais sensíveis”, sublinha.
Como o Acordo de Paris
Relacionar as crises gémeas das alterações climáticas e da biodiversidade é um dos objectivos dos documentos que vão a discussão na COP15. Há até quem leve a metáfora mais longe e diga que precisamos de um Acordo de Paris para a biodiversidade.
“Enquanto no clima temos aquela meta de 1,5 a dois graus de aquecimento global máximo, aqui, no essencial, a grande meta é travarmos a perda de biodiversidade nesta década”, explica Helena Freitas, professora na Universidade de Coimbra e especialista em biodiversidade e desenvolvimento sustentável. Esse é o objectivo até 2030. “A partir daí, é sermos capazes de transitar para cenários de estabilidade na maior parte dos ecossistemas do mundo em 2050”, completa.
O documento em discussão, que saiu da primeira parte desta cimeira, organizada em Kunming, na China – a conferência apenas se realiza em Montreal porque a China considerou não ter condições para a organizar, devido à pandemia de covid-19 – e de várias rondas de negociações, prevê 21 metas para acção urgente na década até 2030. Estas incluem objectivos como começarem a ser restaurados pelo menos 20% dos ecossistemas degradados de água doce, marinhos e terrestres, ou assegurar que pelo menos 30% das áreas terrestres e marítimas em todo o mundo, em especial as de maior importância para a biodiversidade, sejam conservadas em áreas protegidas.
O dinheiro é importante: há um buraco de 700 mil milhões de dólares por ano (o equivalente a 664 mil milhões de euros) no financiamento de acções para promover a biodiversidade. Por isso, há uma meta que prevê o aumento dos fluxos de recursos financeiros internacionais para os países em desenvolvimento para pelo menos 200 mil milhões de dólares por ano (189 mil milhões de euros). Outra meta fala em “redireccionar, reformar ou eliminar” subsídios prejudiciais à biodiversidade, reduzindo-os em pelo menos 500 mil milhões de dólares anuais (474 mil milhões de euros).
“No clima assumem compromissos de redução de emissões. Vale a pena inspirarmo-nos nisso. Nesta década, cada país tem de ter capacidade para definir os seus planos de acção para a biodiversidade e quais os recursos financeiros de que necessita. Isto tem falhado tremendamente”, afirma Helena Freitas. “Acredito que haja algum avanço na COP15, até porque a mobilização de recursos financeiros tem de estar associada a algum planeamento. Mas para travar a perda da biodiversidade em 2030, temos de ter forma de monitorizar estes planos de acção”, sublinha.
Falam e não cumprem
Depois de vermos a falta de ambição – ou mesmo o falhanço, dizem alguns – da COP27, a Cimeira do Clima, em Sharm el-Sheikh, no Egipto, são boas as perspectivas de sucesso para a COP15? Jorge Paiva pensa que não. “Tomam decisões que depois não cumprem. Nunca cumpriram. Quando chegam à COP seguinte, dizem ‘Ah não cumprimos o que foi estipulado na COP anterior’ e andamos nisto”, afirma. “Só tem uma vantagem: na altura fala-se muito, porque vão os políticos. Mas depois, pff!, esquecem.”
Helena Freitas tem uma visão mais temperada. “As COP, indiscutivelmente, estão a perder alguma credibilidade na percepção pública. Mas continuam a ser o último reduto em que há uma comunicação mais fácil entre os poderes políticos e a comunidade científica, e a sociedade em geral”, reconhece. “A expectativa é modesta, porque vimos de uma COP27 que não correspondeu [às expectativas]. Mas também vale a pena dizer que a COP15 foi muito bem preparada, teve vários momentos de discussão dos textos principais”, sublinha.
“Recentemente houve um momento que não deixará de influenciar a COP15 a vários níveis, que é a eleição de Lula da Silva como Presidente do Brasil e a expectativa que se criou à volta da aliança entre países com florestas tropicais. É absolutamente imprescindível travar a desflorestação. Essa é uma das expectativas que tenho, que os compromissos à volta da floresta tropical tenham algum balanço”, conclui Helena Freitas. “Outra área de onde espero que saia uma agenda impulsionadora é a financeira, com um reforço dos instrumentos, porque é preciso recuperar a confiança no financiamento Norte-Sul”, salienta.
“Os grandes dramas serão em torno do estabelecimento de áreas de conservação, que fiquem completamente salvaguardadas de qualquer exploração”, prevê Maria Amélia Martins-Loução. “Veja-se o novo aeroporto de Lisboa. Por mais informações que se dê, de que o estuário do Tejo é uma zona onde não pode nem devia ser projectado um aeroporto… Ganha sempre o desenvolvimento. É por isso que dizem que, quando os delegados da COP15 aterrarem em Montreal, deviam levar umas garras e ir armados com uns dentes fortes e aguçados para não largarem o osso. Não estou a ver que a coisa seja pacífica.”