Precisamos de ler

Uma pessoa com hábitos sedentários não consegue correr 10 quilómetros seguidos, então alguém sem hábitos de leitura não consegue interpretar, compreender e reflectir sobre aquilo que lê, vê e ouve.

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Precisamos de ler, este é um facto aparentemente muito óbvio, mas que infelizmente ainda é pouco compreendido. Aqui, o meu objectivo não é, de todo, dar um sermão ao leitor, mas fazer apenas uma pequena e simples reflexão sobre um assunto evitado demasiadas vezes.

O que eu quero dizer com “precisamos de ler” não é que precisamos aprender a ler - pelo menos, não da forma mais óbvia. A percentagem de portugueses sem escolaridade era, em 2021, segundo dados da Pordata, 3,8%, o que significa que quase 100% dos portugueses e portuguesas têm pelo menos o 1.º ciclo feito e, consequentemente, sabem associar sons vocais a símbolos e juntar esses símbolos para criar outros sons e assim dar origem a palavras e frases. No entanto, isso não significa que consigamos interpretar as intenções e mensagens presentes num texto.

Como é que isso se consegue? Pois bem, com treino, que é como quem diz, lendo. Mais uma vez, algo óbvio, porém, segundo um estudo realizado pelo Plano Nacional de Leitura e o Centro de Investigação e Estudos de Sociologia, em 2019, a grande maioria dos inquiridos (alunos do 3.º ciclo e secundário) afirmavam que tinham lido menos de três livros por prazer nos últimos 12 meses e que 21,8% daqueles jovens reconheciam que não tinham lido nenhum livro no mesmo período. Naturalmente, uma pessoa com hábitos sedentários não consegue correr 10 quilómetros seguidos, então alguém sem hábitos de leitura não consegue interpretar, compreender e reflectir sobre aquilo que lê, vê e ouve.

Poderá parecer inofensivo alguém ler A Metamorfose e ver só um tipo feito num bicho ou ler Os Maias e ver só uma sem-vergonhice - o que isso afecta a vida de alguém? Verdade. Contudo, um pouco de sentido crítico e de capacidade interpretativa adquiridas através de uma leitura vasta e variada evitam que se seja tão facilmente seduzido pelas palavras de senhores que dão muito às mãos dizendo apenas e só palavras soltas sem nexo nem conteúdo; pela escrita de um senhor barbudo e os milagres da sua marreta mágica; pelas teorias da conspiração de que a terra é um disco ou que as vacinas nos transformam em jacarés; pelas doces palavras de um mentiroso que nos quer fazer cair num esquema ou se faz passar por uma pessoa famosa; pelas “notícias” de alguns meios de comunicação que afinal não são exactamente da forma apresentada.

Como gosto de dar sempre a minha visão como cigano, fá-lo-ei agora também. Para a comunidade cigana, ler não é algo habitual, sendo até visto com maus olhos. Não é algo necessário e é perda de tempo: aprendendo a juntar as letras já se alcançou o nível preciso para se viver. Escusado será dizer as consequências disto e, para não me alongar, só digo que o principal problema da comunidade cigana é que os seus membros têm as mentalidades em 1950 e, mais do que uma visão do mundo culturalmente diferente, têm, muitas vezes, uma visão temporalmente diferente.

Como se podem criar hábitos de leitura? Isso já foi muito falado, mas vou aportar o meu grãozinho de areia. Não basta existirem bibliotecas municipais se ninguém souber ou reconhecer as suas existências; há que tornar as bibliotecas um núcleo de cultura local atraindo pessoas com muitos eventos temáticos e indo junto da população.

Não adianta obrigar jovens a ler Os Lusíadas ou O Ano da Morte de Ricardo Reis e limitar tudo a resumos forçados e a interpretar apenas a valentia de Vasco da Gama e a diferença social entre Ricardo Reis e Lídia. É importante entender que toda a leitura é bem-vinda e se deve promover a interpretação de texto de tudo, até das BD’s do Lucky Luke ou dos livros Uma Aventura. A interpretação de texto é uma ferramenta de liberdade pessoal muito pouco reconhecida e isso é verdadeiramente grave.

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