A incrível viagem de duas baleias da China até ao primeiro santuário na Islândia
No arquipélago Vestmannaeyjar, na Islândia, está a ser construído o primeiro santuário para cetáceos do mundo. Duas belugas serão as primeiras habitantes e devem mudar-se na Primavera.
Estava praticamente tudo pronto para a grande mudança. Faltavam horas para que as duas belugas, Little White e Little Grey, fossem transferidas do aquário no centro de visitantes em Heimaey, nas ilhas Vestmannaeyjar, na Islândia, para uma baía ali ao lado, transformada no primeiro santuário do mundo para baleias. Mas a operação teve de ser cancelada, quando o barco dos mergulhadores que trabalham com a equipa responsável pelas belugas se afundou na baía. “Ficámos todos devastados”, disse Audrey Padgett, gestora do projecto, no vídeo em que anunciou o adiamento da transferência há muito aguardada. O caminho para devolver as duas belugas a um ambiente mais natural, depois de terem passado grande parte da sua vida num parque aquático na China, está a ser mais pedregoso do que o esperado.
Se alguém pensava que a longa viagem entre a China e a Islândia seria a prova mais difícil que as duas belugas (Delphinapterus leucas) teriam de enfrentar, a realidade está a mostrar que não é bem assim. “Sabíamos que cada passo seria determinado pelas baleias e que era importante que todos os detalhes estivessem certos, mas nenhum de nós esperava que demorasse tanto como está a demorar”, diz, por videochamada, a norte-americana que se mudou para a Islândia para gerir este projecto.
As duas baleias nasceram em 2007, no mar de Okhotsk, na Rússia, mas desde muito jovens que não sabem o que é viver em mar aberto. Foram capturadas ainda muito pequenas e levadas, primeiro, para um centro de investigação na Rússia e, depois, para um parque aquático em Xangai, na China.
Chegaram ao Changfeng Ocean World, em 2011, e ficariam ali, num aquário interior, onde faziam espectáculos diários para os visitantes. A compra do espaço, no ano seguinte, pela Merlin Entertainments, acabaria por representar uma mudança para as baleias, já que a empresa se opõe à manutenção de cetáceos em cativeiro a realizar este tipo de actividades. Ainda assim, a busca por uma solução para as duas belugas demoraria muito tempo e Little White e Little Grey ficaram durante oito anos na China, até iniciarem a longa viagem de mais de 9600 quilómetros, entre Xangai e Vestmannaeyjar.
Durante 30 horas, numa operação cuidadosamente preparada, as belugas viajaram de camião, avião e barco, em Junho de 2019, até ao enorme tanque com dois milhões de litros de água do centro de visitantes do Sea Life, que funciona como a sua casa intermédia, até poderem ser transferidas para o santuário marítimo a poucos metros de distância, na baía de Klettsvik, muito perto do porto da ilha.
A baía que recebeu Keiko
Enquanto se procurava encontrar o cenário ideal para instalar este santuário pioneiro, foram considerados locais na Rússia, Estados Unidos, Noruega e Escócia, mas a baía de Klettsvik, um ponto abrigado no arquipélago islandês, acabaria por ser o escolhido. Foi aí, nessa mesma baía, que esteve instalada a orca Keiko, protagonista do filme Libertem Willy (1993), depois de uma campanha para devolver ao mundo selvagem a baleia que, tal como as belugas, fora capturada em bebé e sempre vivera em parques aquáticos.
Depois de um processo de reabilitação nos Estados Unidos, a orca foi levada para Klettsvik em 1998 e durante alguns anos os tratadores tentaram prepará-la para a possibilidade de ser libertada definitivamente no mar. Mas o processo não foi bem-sucedido. Keiko nunca se habituou a alimentar-se sozinha e procurava a companhia dos humanos, aproximando-se dos barcos, em vez de interagir com outras orcas. Em 2002, os tratadores perderam-no de vista, numa das incursões no mar alto, e a orca só seria descoberta na Noruega, depois de ter seguido um barco de pesca até à costa daquele país. Keiko não regressou à Islândia e acabaria por morrer em Dezembro de 2003, vítima de pneumonia.
A história da orca é muitas vezes apontada como um falhanço e um exemplo de quão difícil é devolver à natureza animais que viveram toda a vida em cativeiro. No caso de Little White e Little Grey, contudo, não há qualquer expectativa de que possam ser libertadas em mar aberto. O santuário que está a ser construído para elas na baía está vedado com uma rede que se estende da superfície até ao fundo do mar e o objectivo é que elas possam viver ali o resto da vida, que pode chegar aos 40 anos (têm, neste momento, cerca de 15 anos). Num ambiente natural, mas controlado e, eventualmente, partilhado com outros cetáceos, já que a equipa do projecto acredita que o santuário com 32 mil metros quadrados e quase 11 metros de profundidade pode albergar até dez belugas.
Pandemia e obras adicionais
Inicialmente, havia a expectativa de que as duas baleias pudessem ser transferidas para a sua nova casa ao ar livre logo em 2020 e as duas baleias ainda passaram quatro meses na baía, mas acabaram por regressar ao aquário do centro de visitantes. “Como elas tinham uma experiência de vida e um tratamento similar, tínhamos a expectativa de que iriam reagir de forma idêntica à mudança para a baía, mas elas mostraram tantas diferenças... E isso foi o que nos levou a decidir que era melhor pensarmos nisto de forma diferente”, explica Audrey Padgett.
O que aconteceu, acrescenta, foi que a personalidade de cada uma das belugas influenciou esta transição, e a Little White não mostrou estar a adaptar-se tão bem como Little Grey. “Vimos desvios do seu padrão normal de comportamento, sobretudo com a Little White, quando começaram as mudanças do clima para o Outono. Não estava a ser ela mesma, não estava tão envolvida”, conta.
Na sequência desta experiência, as baleias regressaram ao tanque no centro de visitantes do Sea Life e a equipa decidiu alterar a infra-estrutura montada na baía: construir uma área mais pequena e protegida dentro do espaço mais vasto do santuário, para funcionar como zona de transição no período de adaptação das belugas à vida ao ar livre, e também como local de mais fácil acesso aos tratadores que acompanham diariamente os animais, garantindo a sua saúde e bem-estar. Mas, com uma pandemia global em curso, conseguir os materiais necessários para fazer o projecto avançar revelou-se mais um problema difícil de ultrapassar. E mais tempo consumido.
A investigadora Filipa Samarra, especialista em orcas e que trabalha no mesmo edifício onde está instalado o centro de visitantes que acolhe as belugas, tem acompanhado o processo que decorre junto à sua sala de trabalho, embora não participe nele. “Este é o primeiro santuário do género, por isso não há um livro de instruções para o que se está a fazer. É algo pioneiro, pelo que é preciso ir testando o que funciona e o que não funciona”, diz, ao telefone.
E, depois, há tudo o que as belugas desconhecem ou esqueceram, por terem vivido fechadas quase toda a vida. Audrey Padgett confirma que o caminho, também aí, tem sido longo. “Elas estavam num espaço interior, com luzes artificiais, água do mar manufacturada, sem vento, sem chuva. Um ambiente imutável, estável. Em alguns aspectos, a estabilidade ajuda, mas também retira algumas ferramentas de adaptação à mudança. Deixam de perceber o que é assustador e o que não é, o que é sentir as correntes ou a chuva. Não têm um quadro de referência. E estamos a dar-lhes lentamente esse quadro de referência, a ver do que se lembram e do que pode precisar de algum ensinamento”, diz.
Exemplo disto aconteceu quando as baleias estavam na baía e interagiram com alguns peixes do local. “No início, estavam a apanhar linguados e a levá-los ao cuidador para os trocar por comida normal. Não sabiam, não reconheciam aquilo como comida. Nem perceberam que aquilo era um peixe”, conta a responsável pelo santuário.
O novo prazo para instalar as belugas no santuário da baía era Agosto deste ano, mas a data teve de ser, de novo, adiada. A 14 de Agosto, um barco que trabalha com a equipa responsável pelas belugas, usado por mergulhadores, afundou-se na baía, com todo o equipamento a bordo. Houve algum derrame de óleo e combustível e concluiu-se também que seria necessário desmontar parte das estruturas já instaladas na baía, para permitir a remoção dos destroços da embarcação. Um trabalho moroso que, associado ao tempo imprevisível (e, por vezes, muito tempestuoso) da Islândia, levou os responsáveis pelo projecto a considerar que seria irrealista sonhar com a transferências das belugas para Klettsvik ainda este ano. Sobretudo com o Inverno a aproximar-se a passos largos.
Audrey Padgett diz que a remoção dos destroços foi feita e que a qualidade da água, que continua a ser monitorizada regularmente, é boa. Mas, com quatro horas de luz do dia e o Inverno instalado, não é tempo para mudanças.
Estudo facilitado
A nova data para a transferência para o santuário marítimo é agora apontada para a Primavera de 2023. Por enquanto, Little White e Little Grey vão continuar no centro de visitantes, a fazer as delícias de todos os que passam por ali e não resistem a ficar largos minutos colados ao vidro amplo com vista para as duas belugas. Uma equipa monitoriza regularmente a sua saúde e garante que ambas estão muito bem. O aumento de peso é uma das provas dessa condição: chegaram ali com 900 quilos e já pesam agora 1100 (Little Grey) e 1200 (Little White) quilos.
Filipa Samarra, habituada a tentar decifrar os segredos das baleias que vivem em liberdade, diz que, para a comunidade científica, a existência de alguns cetáceos em cativeiro — sobretudo em situações como esta, com uma grande componente de investigação — permite o acesso a informação que dificilmente seria obtida de outra forma. “Para uma pessoa que está habituada a estudar as populações selvagens, é estranho e difícil ver animais que sabemos que nadam centenas de quilómetros estarem confinados a um espaço muito mais pequeno do que aquele que usariam se estivessem em liberdade. Mas, por outro lado, há muitas coisas que aprendemos e que não seria possível aprender se não existissem estes animais em cativeiro. Questões de comportamento, cognição, imensos ramos que são muito importantes para percebermos o que acontece nas populações selvagens”, diz.
“Mas” — salienta a investigadora — “não é preciso ter imensos animais em cativeiro para isto”. E um espaço como o santuário também ganha outra relevância neste aspecto. “Eles estão muito focados na monitorização do bem-estar das baleias. E a longo prazo estão muito empenhados em fazer deste santuário um sítio onde se faça bastante investigação”, relata.
Primeiro, é preciso que as duas belugas se instalem na sua nova casa. Que se adaptem a ela e ao inclemente clima islandês. O objectivo é o de que possam passar lá todo o ano. “Quando estiverem prontas”, salvaguarda Audrey Padgett, indicando que pode haver ainda um novo regresso ao tanque no primeiro Inverno após a mudança, se tal se revelar necessário.
Depois, os visitantes poderão ver as baleias numa visita de barco, que está a ser montada e que incluirá também uma passagem por uma das ilhas do arquipélago que alberga uma colónia das principais estrelas locais: os papagaios-do-mar (que o santuário também ajuda, recolhendo as crias que precisam de cuidados). E já há outros parques a perguntar ao santuário islandês se podem receber as suas belugas — estima-se que existam cerca de 300 em cativeiro.
Mas Audrey Padgett diz que esse será um processo longo. E que não vai avançar enquanto Little White e Little Grey não estiverem perfeitamente confortáveis na baía. Primeiro, é preciso que elas aprendam a chamar, de novo, casa ao mar.