Dispam a camisola! Ou então não dispam
Se se diz que o futebol une povos, por que motivo não haveria de unir jornalistas? Há algo que, no Mundial 2022, coloca brasileiros, argentinos, mexicanos, marroquinos, tunisinos e até alguns iranianos no mesmo grupo: são os adeptos mais verdadeiros que por cá andam. Tão verdadeiros, que são capazes de, por amor às selecções, colocarem-se, de livre vontade, numa posição de fragilidade.
Falo dos jornalistas que são Messis. Ou Neymares. Também por cá andam Ochoas e Hakimis. Na hora de contarem o que se passa em Doha, há jornalistas destes países que o fazem de camisola vestida. Passeiam e trabalham vestidos a rigor, como adeptos. E por que motivo não deveriam fazê-lo? Até existem alguns motivos – mas serão lógicos?
Há alguns anos, quando ainda escrevia as primeiras coisas como jornalista, prestei-me, numa conversa na redacção, a criticar aquilo a que chamei “jornalismo patriota”, à luz dos relatos apaixonados nos jogos da selecção e de narradores que nem sempre pareciam manter-se equidistantes.
Nesse momento, o jornalista António Tadeia, há muitos anos comentador da RTP, fez-me um alerta, lembrando-me de que temos de ver a narração dos jogos de futebol como entretenimento, e não como jornalismo.
Ainda que a tese não me tenha convencido a 100% – porque o jornalista-entertainer confunde-se, não poucas vezes, com o jornalista-adepto –, aquela teoria fez-me algum sentido e esfriou-me, até hoje, o ímpeto crítico para com os narradores em geral.
Esse alerta tem-me surgido várias vezes aqui em Doha, quando vejo jornalistas vestidos com as camisolas dos seus países. Em abstracto, o jornalista não se deve prestar a isso, até porque não basta ser sério, tem de parecer. Mas, lembrando-me do que me dizia o Tadeia, rapidamente penso: “Mas eu sou melhor jornalista e mais imparcial do que eles por não usar a camisola de Portugal e não vibrar com os golos?” Não creio. E eles são piores e mais parciais do que eu por terem a camisola vestida? Precisaria de analisar o trabalho deles caso a caso, mas, em abstracto, também diria que não há motivos para haver causa-efeito.
E este tema é mais rico do que parece. É que quem anda vestido com as cores das suas selecções não só é uma clara minoria, como é quase sempre dos mesmos sítios do globo.
Entrando numa sala de jornalistas, em Doha, temos os sóbrios nórdicos, anglo-saxónicos e europeus em geral. Depois, temos os argentinos, sem pudor de se vestirem “à Messi”, os brasileiros, com o “10” de Neymar, os mexicanos, sem pudor de serem “Ochoas”, e os tunisinos, iranianos e marroquinos, que se têm relevado uns surpreendentes patriotas na vestimenta. Os últimos, vindos de Marrocos, talvez até mais do que os já habituais amigos da América Latina.
Mais do que uma questão de parcialidade jornalística, parece ser uma questão cultural. Que continuem a celebrar os golos na tribuna, vestidos à Messi. Pelo menos, estes não são pagos para vestirem a camisola.