Salve-se quem puder: vem aí o novo proteccionismo verde
1. O problema ambiental tornou-se crítico para o planeta, pelo que reverter os impactos negativos da actividade humana é uma prioridade absoluta. Todavia, fazer isso à escala global é uma tarefa imensa e frustrante. Esperar que os 8 mil milhões de seres humanos que habitam hoje o planeta, repartidos por 193 Estados soberanos membros das Nações Unidas, extraordinariamente diversos, alguns minúsculos no território e/ou população, outros gigantescos, alguns profundamente expostos aos efeitos mais negativos alterações climáticas, outros não, alguns com imensa riqueza material, outros com uma devastadora pobreza, actuem apenas de forma cooperativa e sem egoísmos, é uma ilusão generosa mas que não ajuda muito a encontrar uma solução.
Por natureza, o ser humano é multifacetado e contraditório. É movido por um generoso impulso humanista-globalista de solidariedade com os outros seres humanos. Mas também é movido por um egoísta impulso de autopreservação individual-grupal, que emerge quando confrontado com escolhas críticas. Este último leva à prevalência do interesse de uma comunidade política soberana. Tudo isto ocorre nesta altura com o ambiente: para além do ideal humanista-globalista de salvar o planeta está a emergir um novo “proteccionismo verde” no mundo desenvolvido.
2. O problema já foi detectado pela Organização Mundial do Comércio (OMC) que dispõe de uma larga experiência em matéria de medidas de proteccionismo. No cerne da questão está o facto de os Estados invocarem objectivos perfeitamente legítimos (como a saúde pública ou a segurança dos consumidores) para implementar medida que, na prática, fecham o seu mercado ou dificultam o acesso ao mesmo. A este propósito, pode ler-se num texto explicativo da organização o seguinte: “Os governos membros da OMC consideram que a protecção do ambiente e da saúde são objectivos políticos legítimos. Mas também reconhecem que as medidas destinadas a cumprir estes objectivos podem dificultar as exportações. E concordam que o desenvolvimento sustentável depende da melhoria do mercado e acesso dos produtos dos países em desenvolvimento [...].
Por outras palavras, as normas ambientais aplicadas por alguns países poderiam ser inadequadas. Poderiam causar custos económicos e sociais injustificados a outros, particularmente países em desenvolvimento, ao dificultarem as exportações.” ( “Environmental requirements and market access: preventing ‘green protectionism’”). A preocupação expressa pela OMC é de inquestionável relevância. Há medidas em fase legislativa ou já em vigor no mundo desenvolvido, ligadas à transição para um modelo sustentável de economia verde, as quais poderão, na prática, levar a um proteccionismo industrial e comercial. Há dois casos que merecem particular atenção: a Lei de Redução da Inflação / The Inflation Redution Act dos EUA; e o Mecanismo de Ajustamento Carbónico Fronteiriço / Carbon Border Adjustment Mechanism (CBAM) da União Europeia.
3. No caso dos EUA, a Lei de Redução da Inflação assumiu uma preferência clara pela produção industrial nacional em detrimento da concorrência externa. No comunicado explicativo dessa legislação pode ler-se o seguinte: “Pela primeira vez, a Lei de Redução da Inflação estabelece disposições faça-o na América para a utilização de equipamento fabricado na América para a produção de energia limpa. A lei prevê créditos fiscais alargados de energia limpa, para energia eólica, solar, nuclear, hidrogénio limpo, combustíveis limpos.” (The White House Fact Sheet, “The Inflation Reduction Act Supports Workers and Families”). Na União Europeia, essa legislação gerou grande apreensão. Margrethe Vestager, a Comissária para a Concorrência, afirmou que a combinação da crise energética com as medidas da Lei de Redução da Inflação pode colocar “em risco parte da base industrial na Europa”. (“U.S. Inflation Reduction Act a risk to Europe's industrial base, EU's Vestager says”). Entre os Estados-Membros, a França, através do Ministro da Economia, Bruno Le Maire, criticou duramente o proteccionismo dos EUA, afirmado que os “subsídios maciços concedidos” podem levar a “aumentar ainda mais o fosso”, colocando as empresas europeias em desvantagem. Acrescentou ainda que as “grandes empresas estrangeiras que queriam instalar-se na Europa estão hesitantes, incertas entre a abertura de fábricas na Europa ou na América”. Em alguns casos, o valor dos subsídios propostos “é quatro a dez vezes superior ao máximo que a Comissão Europeia autoriza.” (“Bruno Le Maire: ‘Le vrai risque pour l'Europe, c'est le décrochage industriel’”, Les Echos,7/11/2022).
4. Mas a tendência para o proteccionismo não é só norte-americana. No caso da União Europeia, é o Mecanismo de Ajustamento Carbónico Fronteiriço, ainda num período de criação legislativa e implementação, que levanta questões de proteccionismo do mercado interno e da indústria europeia. Segundo a Comissão, a sua razão de ser são as “políticas ambientais e climáticas menos rigorosas em países terceiros” que trazem um elevado risco de que “as empresas sediadas na UE possam deslocar a produção de intensidade carbónica elevada para fora da UE para tirar partido das normas laxistas”. E também que os produtos europeus “possam ser substituídos por importações de intensidade carbónica mais elevada”.
O CBAM irá então “nivelar o preço do carbono entre os produtos nacionais e as importações e assegurar que os objectivos climáticos da UE não sejam prejudicados pela deslocalização da produção para países com políticas menos ambiciosas”. Será introduzido de forma gradual e “aplicar-se-á inicialmente apenas a um número seleccionado de mercadorias com elevado risco de fuga de carbono: ferro e aço, cimento, fertilizantes, alumínio e produção de electricidade.” (Comissão Europeia, “Mecanismo de Ajustamento Carbónico Fronteiriço: Perguntas e Respostas” 14/07/2021). Todavia, a ideia de que a União Europeia — e os EUA, com a já referida Lei de Redução da Inflação — estão genuinamente preocupados com a preservação do ambiente à escala da humanidade é vista como pouco convincente (e hipócrita) no Sul global (o mundo em desenvolvimento).
5. O novo proteccionismo verde faz lembrar o debate fracturante em torno do dumping social (a prática segundo a qual os trabalhadores são remunerados e/ou têm condições de trabalho e regalias sociais abaixo de um determinado standard considerado um padrão aceitável pelos países mais desenvolvidos), o qual emergiu com a globalização. Aquilo que aos olhos de uns (o Ocidente desenvolvido) era dumping social, aos olhos de outros (os países em desenvolvimento) era proteccionismo. No caso das medidas que agora a União Europeia e os EUA pretendem aplicar emerge um problema similar. Para o Ocidente, que se vê como farol da legislação ambiental, tais medidas serão um estímulo para o resto do mundo adoptar um standard elevado de protecção ambiental.
Como consequência, os países do Sul global (e, desde logo, os grandes poluidores como a China e a Índia) implementariam políticas climáticas à sua maneira europeia, ou seja, adoptariam um standard mais exigente. Todavia, pelo menos nos anos imediatos, o resultado será também tornar mais difícil aceder, a partir do exterior, ao mercado da União Europeia e dos EUA. E certamente o mundo exterior terá também menos investimento directo estrangeiro de empresas europeias e norte-americanas.
Ironicamente, como vimos, o próprio mundo desenvolvido troca já entre si acusações de proteccionismo devido a essas medidas. Se é assim entre o mundo desenvolvido, é muito pior na relação com os países menos desenvolvidos. Nestes últimos, começa a instalar-se a ideia de que aquilo que pretendem os países desenvolvidos é transferir para o Sul global os custos da transição económica e energética. Se for assim, entraremos numa perniciosa fase de “salve-se quem puder”. No Sul global, aumentará, ainda mais, o ressentimento contra o Ocidente visto como estando a defender o seu bem-estar, empregos e indústrias, não o planeta e a humanidade.