Um “detalhe” na evolução salvou as plantas da escassez de água

Era um mistério com mais de cem anos. Descoberta pode ajudar a criar programas de plantação mais adaptados a terrenos e e climas secos esclarecendo como as plantas se adaptam à falta de água.

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Caule fossilizado de Dernbachia brasiliensis, um feto arbóreo com 250 a 300 milhões de anos, com o tecido do lenho destacado (a azul) Ludwig Luthardt/Museu de História Natural de Berlim

As plantas são muito vulneráveis à escassez de água – começam a secar e morrem rapidamente. Quando não há água em volta, como pode uma planta sobreviver? Ao longo dos últimos 400 milhões de anos, as plantas evoluíram, tornaram-se mais resistentes à seca e isso deve-se a algumas alterações genéticas que ajudam a criar um sistema de defesa mais eficaz. Perceber como algumas plantas se adaptaram à falta de água pode vir a ser uma informação muito útil para lidar com as alterações climáticas que hoje enfrentamos.

Não sabíamos tudo (e continuamos sem saber), mas há outra evolução neste longo período de tempo que explica um mistério com mais de 100 anos: a forma de estrela nas células do tecido (lenho) que transporta água e nutrientes da raiz para o caule e as folhas não é obra do acaso – é uma resposta à falta de água.

Não é só mais um detalhe de uma geringonça colocada em movimento para dar uma esperança de vida maior às plantas. Sem esta evolução no lenho, a natureza verde que conhecemos hoje seria improvável.

Todas as plantas, com excepção das mais pequenas, precisam de tecidos vasculares para levar a água a todo o seu corpo. Quando há água suficiente, ela flui pela planta como uma cadeia contínua de moléculas. As moléculas de água do fundo desta cadeia evaporam e, acto seguinte, outras moléculas de água são puxadas para as substituir.

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Comparação entre a forma estelar (à direita) que protege as plantas e a forma cilíndrica que permite maior disseminação da embolia MARTIN BOUDA

Ora, se o solo secar, esta substituição torna-se mais difícil e a cadeia de moléculas é interrompida. “Quando esta cadeia quebra, uma bolha de gás expande-se na conduta (a célula do lenho). Esta bolha é uma embolia, que bloqueia o transporte de água e, se se expandir a todo o tecido, a planta não conseguirá trazer mais água e irá morrer”, explica Martin Bouda, investigador do Instituto Botânico da Academia Checa de Ciências (República Checa).

Este é o problema que afecta estas plantas vasculares quando não há água. A solução é adaptar-se. “Estas plantas tiveram de ultrapassar este problema construindo os seus tecidos vasculares muito cuidadosamente, para prevenir que a embolia se espalhasse”, aponta. No estudo que liderou, publicado na revista científica Nature, Martin Bouda percebeu precisamente que o formato estelar (e alguns outros também complexos) das células do lenho foi a solução encontrada pelas plantas no seu processo de evolução.

“As plantas que encontraram soluções para contrariar a embolia foram as que prosperaram, disseminaram-se e sobreviveram às extinções cataclísmicas na História da Terra”, diz. E há vários exemplos: “Os fetos geralmente têm um lenho muito fino e com formas alongadas. As flores herbáceas tendem a dividir o lenho em feixes separados muito pequenos, o que impede totalmente a propagação da embolia.

Há outros exemplos inversos: as Protolepidodendrales eram plantas vasculares primitivas que mantiveram o lenho num grande cilindro no centro do caule e, portanto, só podiam crescer em pântanos. Morreram antes do final do período Devoniano [entre 420 e 360 milhões de anos atrás]”, nota o investigador checo.

Mistério centenário

A observação de que os tecidos vasculares de plantas maiores tinham formas complexas (muitas vezes em estrela) já data de 1920, apresentada pelo botânico Fredrick Bower e o seu estudante Claude Wardlaw. Com estes resultados, esta dupla demonstrava que a organização do lenho se tornava mais complexa (e com formatos diferentes) quanto maior fosse a planta. Mas faltava uma explicação para o fenómeno.

Há faltavam duas peças neste puzzle, como aponta Martin Bouda. “Primeiro, apenas pudemos observar a embolia a espalhar-se no lenho e os efeitos que isso tem nas últimas décadas. A ciência sobre o stress das plantas com a seca tem amadurecido ao longo do tempo e só vimos uma explosão no conhecimento a partir dos anos 1990”, diz.

“A segunda peça são as técnicas computacionais. Nós desenvolvemos algumas métricas topológicas originais para este trabalho e uma simulação numérica da disseminação do embolismo que tem de ser feita em computadores. Infelizmente, não havia forma de os investigadores poderem fazer isso em 1920.”

E há outra peça, acrescentada à “última hora” pelo investigador checo na conversa com o público. “O stress da seca é estudado experimentalmente em plantas vivas. A ideia de comparar estas plantas com outras plantas que morreram há 400 milhões de anos não era óbvia para nós hoje, mesmo que o Bower e o Wardlaw tenham feito exactamente isso há 100 anos. Ironicamente, aqui eles tinham uma perspectiva muito melhor que a ciência moderna”, atenta.

A comparação entre plantas com uma diferença temporal tão grande permitiu aos investigadores compreender a morte das Protolepidodendrales – que não se adaptaram e mantiveram a forma cilíndrica nas células do lenho. “Por incrível que pareça, temos fósseis com cerca de 407 milhões de anos com as células do caule da planta suficientemente preservadas para podermos entender como o tecido funcionava”, refere Bouda.

A partir daqui, olharam para a forma como as células estavam dispostas nestas plantas e desenvolveram uma simulação para testar a disseminação de embolia nessa planta. “O momento-chave aconteceu quando percebemos que todas as nossas plantas tinham uma organização diferente do tecido a nível macroscópico do que as primeiras plantas vasculares. Na verdade, essa organização original é extremamente rara actualmente.”

Nova ode à evolução

Abre-se mais um capítulo para abordar a evolução – agora no reino das plantas. Essa evolução já tinha determinado algumas alterações genéticas e, agora, sabemos que criou alterações na organização das células do lenho. Tudo para sobreviver à escassez de água e poder “povoar” novos espaços, com menos acesso a água.

Antes do estudo a ideia vigente era outra. “A explicação clássica diz que não há razão directa para os tecidos do lenho evoluírem de uma determinada maneira. O aumento da complexidade ao longo do tempo era apenas um bom exemplo da coincidência na evolução”, diz ao PÚBLICO. Por exemplo, à medida que os ramos de uma planta cresciam, as hormonas que guiam o crescimento dos ramos também determinariam o padrão do lenho.

Este exemplo, dado pelo investigador checo, acontece nalgumas plantas – mas não em todas e não é a única explicação para os padrões das células do lenho. “No entanto, se a complexidade vascular é seleccionada independentemente pela sobrevivência à seca devido à disseminação da embolia, a teoria clássica não é válida como explicação”, realça Martin Bouda.

E esta não é apenas uma correcção à cronologia biológica das plantas. Isto também nos pode ajudar a criar programas de plantação mais adaptados a terrenos e climas secos, que beneficiem do conhecimento adquirido sobre como as plantas se adaptam à falta de água – um piscar de olho às alterações climáticas. Este pode ser o futuro, mas, para já, ainda parece distante, confessa Martin Bouda.