Lenine: “Houve um hiato medieval na história do Brasil”

Cantor e compositor pernambucano traz a Portugal Rizoma, concerto em duo com o seu filho e produtor Bruno Giorgi. O primeiro concerto é esta quinta-feira, no Casino Estoril.

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Lenine e o seu filho Bruno Giorgi têm três concertos em Portugal JAIRO GOLDFLUS

Chama-se Rizoma, junta em palco o cantor e compositor pernambucano Lenine e o seu filho e produtor Bruno Giorgi e chega agora a Portugal, a três palcos distintos, depois de se ter estreado em São Paulo, no dia 15 de Abril deste ano, correndo depois outras cidades e palcos pelo Brasil. Esta quinta-feira estará no Casino Estoril (Salão Preto e Prata, às 21h30), seguindo depois para Miranda do Corvo, no dia 26 (Casa das Artes, 21h30) e terminando no Porto, no domingo dia 27 (Casa da Música, Sala Suggia, 21h).

Foi em 2015 que Lenine lançou o seu mais recente álbum de estúdio, Carbono, que aliás veio apresentar a Portugal em Novembro desse ano, em dois concertos (CCB e Casa da Música) integrados no Misty Fest. O seu projecto seguinte, que deu origem a um disco ao vivo, foi Lenine em Trânsito (2018) e era esse que estava programado para ser apresentando em Portugal, quando a pandemia da covid-19 se interpôs. “Por causa do isolamento, conjugado com o pandemónio no caso aqui do Brasil, tudo o que eu estava fazendo de alguma maneira se congelou”, diz Lenine ao PÚBLICO.

A paragem ditou-lhe outros rumos, e foi aí que Rizoma começou a esboçar-se. “Foi durante a pandemia que começámos a pensar nele, como forma de voltar a visitar os lugares, voltar a viajar.” O meio familiar também ajudou: “Só pelo facto de eu ter a sorte de os meus filhos trabalharem com música, principalmente o Bruno Giorgi, que já era meu produtor há muito tempo, é que pudemos idealizar este espectáculo. Onde, além de nos revezarmos no palco, eu e ele, nos instrumentos e nas vozes, pudéssemos trazer um pouco do ambiente sonoro de cada gravação original das músicas que escolhi. Está presente um bocadinho de cada produtor que me ajudou a fazer os meus discos ao longo desses anos todos.”

Uma maneira de fazer renascer canções de várias épocas, diz Lenine: “Tem um pouco de cada um dos discos que fiz, e isso foi intencional para ser uma fotografia ampla do meu trabalho de composição ao longo dos anos. De repente celebro, como pai dessas crianças que são as músicas, essas roupagens que temos quando gravamos cada uma delas.”

Lírio, um novo instrumento

O nome do espectáculo, Rizoma, foi escolhido “por um somatório de significados”: “Tanto da parte botânica, como da parte filosófica, de Deleuze. Essa ideia da centelha criativa, que quando começa a gente não tem a mínima noção de como se dá e como cresce. É a velha história de que o universo está rumando para o caos, mas em alguns momentos existe uma ordem, que é imprevisível. Então toda essa fagulha criativa tem a ver com a forma como se espalha uma raiz pela terra, botanicamente, acabando por ser o estopim da criação. Além disso, somos pai e filho, então é também completamente radicular o nosso trabalho.”

Em palco, vão estar apenas os dois, nas vozes e nos instrumentos. E Lenine traz um que é, até agora, único: “É um instrumento que foi feito para mim, eléctrico, mas também midi e synth, e tenho como brincar com as possibilidades sonoras dele. É um instrumento muito especial, que só me tem dado alegria. Foi feito por um luthier aqui do interior do Brasil, de Minas Gerais.” Não tem nome fixo ainda, porque é um protótipo, mas já foi baptizado. “Chama-se Lírio e eu tenho o primeiro. Uma pessoa me procurou e disse: ‘Eu fiz um instrumento que é você quem tem de comprar.” Visualmente, assemelha-se a algo entre uma guitarra semi-acústica e um violão semi-acústico, diz Lenine. “É eléctrico, com três possibilidades de captação de som, uma caixa acústica com um microfone num gel e um tipo de synth de baixa frequência, que pode ser induzido a fazer um super grave. Isso tudo dá umas possibilidades de timbre muito especiais. Além disso, sabendo que eu gosto muito de usar o baixo em Ré, ele fez uma extensão física em dois tons no baixo.”

Entre as canções mais recentes de Lenine está Intolerância, parceria com Ivan Santos e que acabou por reflectir a realidade brasileira. “É quase premonitória. Porque falava justamente num período que se transformou no ápice da intolerância no Brasil. E a música já falava sobre isso, como uma pessoa real, física, a intolerância.” “Essa foi a grande reunião em torno de um projecto de vida, do recomeço, com afecto, de um caminho colectivo, do recomeço do reconhecimento de que somos muitos e que estamos num processo de evolução. Parece que houve uma lacuna, um hiato medieval na história do Brasil. As pessoas abriram os seus armários e soltaram os seus monstros mais grotescos, sem nenhum pudor nem nenhuma educação. Isso, para mim era inimaginável, mas aconteceu. Agora, é recomeçar e refazer muita coisa. Porque pior não poderia estar.”

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