Segurança da Tesla em julgamento na Coreia do Sul após acidente fatal
Um Model X incendiou-se com um homem no banco traseiro, sem que as portas se abrissem e sem que os bancos da frente reclinassem. O homem morreu. Quem ia ao volante diz que o carro acelerou sozinho.
Um Tesla Model X branco foi contra uma parede de um parque de estacionamento e incendiou-se. O acidente, que ocorreu num bairro de luxo de Seul, há dois anos, resultou na morte de um conhecido advogado e um grande amigo do Presidente da Coreia do Sul. Os procuradores acusaram o condutor de homicídio involuntário, mas o condutor culpa a Tesla.
Choi Woan-jong, que ganhava a vida a conduzir alcoolizados nos seus próprios carros, alega que o Model X acelerou sozinho e que os travões falharam no acidente de Dezembro de 2020.
O julgamento criminal, que está prestes a começar na Coreia do Sul, depende de questões sobre a segurança dos carros Tesla, numa altura em que o fabricante de veículos eléctricos (BEV, de carros eléctricos a bateria) enfrenta uma série de processos judiciais e um maior escrutínio por parte dos reguladores.
Choi, de 61 anos, é agora incapaz de encontrar trabalho como motorista independente, na Coreia conhecido como um “motorista substituto”. Diz ainda que sofre de flashbacks e depressão em vésperas de enfrentar um julgamento que põe a sua credibilidade contra a do fabricante de automóveis mais valioso do mundo.
“Quando acordo, sinto-me abandonado, flutuando sozinho no meio do oceano”, desabafa Choi, que foi operado após o acidente por uma perfuração do intestino.
A Tesla não respondeu a pedidos de comentários sobre o acidente e o caso de Choi. Um advogado da família de Yoon Hong-geun, o proprietário do carro que morreu no acidente, também se recusou a comentar.
O caso de Choi chamou a atenção de alguns defensores da segurança na Coreia do Sul que pretendem alterar uma disposição do acordo de comércio livre (ACL) com os Estados Unidos que isenta a Tesla das normas locais. Por exemplo, a Tesla não é obrigada a seguir os regulamentos sul-coreanos que exigem que pelo menos uma porta à frente e outra atrás tenham uma abertura mecânica em caso de falha no sistema eléctrico. Isto acontece com a empresa de Elon Musk ou com qualquer outra norte-americana que venda menos de 50 mil veículos no país asiático (em 2021, a Tesla vendeu 17.828 automóveis na Coreia do Sul).
Park Keun-oh, um funcionário da divisão do ACL Coreia-EUA do Ministério do Comércio da Coreia do Sul, disse que a cláusula de isenção exige que a Tesla cumpra os regulamentos de segurança americanos, que não exigem um trinco mecânico de segurança. Tais trincos permitem que as portas sejam abertas mesmo que o carro não tenha energia eléctrica.
Park recusou-se a tecer mais considerações e o representante do Gabinete do Comércio dos EUA não respondeu aos pedidos da Reuters de comentários sobre o acordo comercial ou os regulamentos.
Os promotores dizem que Choi pressionou o acelerador ao entrar na garagem de um edifício de apartamentos em Seul, atingindo os 95 km/h, antes de se despistar. Mas o homem nega esta versão, contando que os espelhos laterais do carro começaram a dobrar-se sozinhos para dentro e para fora, pouco antes de o carro acelerar automaticamente.
“Parecia que o carro tinha sido varrido por um furacão”, disse Choi, que lembra que, na altura do acidente, já conduzia há mais de 20 anos e tinha experiência de condução de Teslas.
O fabricante de automóveis forneceu aos procuradores dados do Model X que o carro transmitiu nos momentos anteriores ao acidente, informou o juiz numa audiência preliminar. A equipa de defesa pediu para ver os dados e está à espera que o tribunal os entregue.
Choi e o seu advogado pretendem provar que os sistemas eléctricos do carro falharam e que a sua concepção atrasou as tentativas dos bombeiros para salvar Yoon.
A bateria do Tesla incendiou-se após o acidente. O fumo e as chamas encheram de imediato o carro, segundo um vídeo da cena, captado pelos bombeiros e visionado pela Reuters.
Choi escapou por uma janela partida do seu lado. Os bombeiros demoraram demasiado tempo a tirar Yoon do banco de trás porque não conseguiam abrir as portas electrónicas do Model X, lê-se num relatório do Corpo de Bombeiros analisado pela Reuters e datado de 31 de Dezembro de 2020. O relatório não diz quanto tempo demorou a retirar o advogado do veículo.
Yoon, de 60 anos, foi declarado morto após os bombeiros o retirarem do carro e efectuarem infrutíferas manobras de reanimação. A causa da morte não foi tornada pública.
O juiz Park Won-gyu disse que planeia chamar os engenheiros da Tesla como testemunhas e que a segurança dos veículos da marca seria examinada no julgamento. O homicídio involuntário implica uma pena de prisão até cinco anos.
Uma visão de chamas
A investigação do posto de bombeiros que respondeu à chamada deliberou que a falha da bateria atrasou a resposta de emergência ao desactivar os controlos dos assentos, o que impediu os bombeiros de reposicionar os bancos da frente para poderem chegar a Yoon, de acordo com o relatório.
A falha eléctrica tornou “impossível garantir espaço para a operação (de resgate)”, diz o relatório. Um representante dos bombeiros recusou-se a comentar.
O relatório diz ainda que os puxadores da porta do Model X, que são embutidos e accionados electronicamente, não se abriram quando a bateria começou a arder. Também diz que os bombeiros não conseguiam tirar Yoon do carro porque não conseguiam mover os bancos da frente após a morte da bateria.
Um vídeo do salvamento mostra os bombeiros a tentarem abrir em vão as portas em estilo asa de gaivota do Model X. Acabaram por partir o pára-brisas dianteiro e puxaram Yoon do carro. De acordo com as filmagens e o relatório dos bombeiros, o homem foi retirado do veículo cerca de 25 minutos após a chamada de emergência.
A Tesla é o único fabricante de automóveis que não fornece dados à Autoridade de Segurança dos Transportes da Coreia (TS), a partir de sistemas de diagnóstico a bordo, para verificações de segurança na Coreia do Sul, de acordo com a agência. A TS ressalvou que a Tesla não é legalmente obrigada a fornecer tais dados, mas que todos os outros fabricantes de automóveis estrangeiros e nacionais o fazem.
Park Sang-hyuk, um legislador da oposição, do Partido Democrático da Coreia, depois do acidente de Choi, fez campanha para que os reguladores pressionassem a Tesla a mudar os manípulos das suas portas e a trabalhar com os reguladores.
Tanto Park como a TS disseram que a Tesla está a trabalhar com a agência para permitir aos proprietários coreanos o acesso aos dados de diagnóstico do seu carro a partir de Outubro de 2023.
“A Tesla tornou-se um ícone de grande inovação, mas penso que [as questões da empresa na Coreia] também suscitam aqui uma séria preocupação para os clientes”, disse Park, referindo-se a casos em que as portas dos Tesla não se abriram após uma colisão e às disposições do acordo de comércio livre.
Um grupo de defesa dos consumidores sul-coreano disse em Setembro que a Tesla não tinha corrigido aquilo a que chamam “defeitos das portas”. O grupo diz ter recolhido informações sobre cerca de 1870 queixas envolvendo as portas Tesla ao longo dos últimos quatro anos. Os dados fornecidos à Reuters por outro legislador sul-coreano confirmaram esse número.
O grupo de consumidores disse que pediu à polícia para investigar a Tesla por não melhorar a segurança dos condutores e passageiros após o acidente fatal em Seul, mas que a polícia lhes disse, em Maio, que não havia provas suficientes para prosseguir.
Numa carta datada de 29 de Junho dirigida ao grupo de consumidores, a que a Reuters teve acesso, a polícia diz que, embora os trincos das portas dos Teslas possam violar as normas de segurança locais, essa consideração foi ultrapassada pelos termos do acordo de comércio livre Coreia-EUA.
A Tesla “poderia estar a violar os regulamentos [locais], mas [a Tesla] não tem qualquer obrigação de cumprir as normas locais de segurança dos veículos motorizados, em conformidade com o acordo de comércio livre entre a Coreia e os Estados Unidos”, diz o auto de polícia.
Nos tribunais sul-coreanos, os condutores em situações em que a causa de um acidente é contestada enfrentam o ónus de provar que o carro tinha um defeito, dizem três peritos legais e de segurança automóvel, e os fabricantes de veículos quase nunca são processados por questões de segurança.
“A menos que tenha passado por isto, nunca saberá como se sente”, disse Ahn Ho-joon, outro “condutor substituto” na Coreia do Sul, que teve um acidente com um Tesla em Maio quase idêntico ao de Choi, mostram os registos policiais. Sobre este acidente a Tesla também não se pronunciou.
Ahn, um dos poucos a assistir a todas as audiências preliminares ao julgamento de Choi, diz que o Tesla que conduzia também acelerou sozinho e embateu em dois veículos numa garagem subterrânea, mas não houve feridos graves. A polícia diz que o acidente foi culpa sua porque não houve problemas com o veículo, mas não o acusou porque os estragos não foram muitos.
Ahn disse ter mantido o seu emprego como motorista substituto independente, mas recusa-se a conduzir Teslas.
Já Choi, sem trabalho e quase sem dinheiro, mudou-se para um cubículo de 6,6 metros quadrados, que arrenda por 350 mil won (250€) por mês. Financiado por subsídios estatais à habitação, inclui uma casa de banho e cozinha partilhadas, e todo o arroz que ele conseguir comer. Apesar destas dificuldades, Choi tem uma visão peculiar sobre o caso que o opõe à Tesla.
“Obviamente, há um processo para tornar os produtos perfeitos através de tentativa e erro. E eu estou apenas destinado a fazer parte desse processo”, declara.