Clima: os destaques de uma cimeira sobre perdas e danos

Enquanto os representantes de quase 200 países negoceiam o documento final, analisamos os falhanços e as virtudes de duas semanas da Cimeira do Clima no Egipto.

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Cimeira do Clima no Egipto estendeu as negociações do documento final pelo fim-de-semana REUTERS/Mohamed Abd El Ghany

Se fosse uma partida de futebol, a 27.ª Cimeira do Clima das Nações Unidas (Conferência das Partes – COP27) já estaria há demasiado tempo na fase de prolongamento. O evento que decorre em Sharm el-Sheikh, no Egipto, devia ter terminado esta sexta-feira – mas, não tendo sido alcançado um consenso sobre questões centrais como a compensação por danos climáticos, as conversações foram prolongadas arrastando-se para este fim-de-semana.

Porém, enquanto os representantes de quase 200 países se preparavam para chegar a acordo sobre o documento final num plenário que se preparava para entrar na madrugada deste domingo, já era possível analisar alguns falhanços e virtudes de duas semanas do mais importante evento sobre a crise climática.

Abertura para discutir perdas e danos

Pela primeira vez, foi incluído na agenda oficial da COP o tema da compensação financeira aos países mais vulneráveis a eventos climáticos extremos (nações que, ao mesmo tempo, pouco contribuíram para a crise climática, comparativamente aos mais prósperos e industrializados). As negociações foram erráticas, abundaram discordâncias e impasses.

Com a decisão de estender até sábado as conversas, continuam em aberto aspectos cruciais como o desenho do mecanismo de compensação, quais países contribuirão e quais serão beneficiados (ainda se debate, por exemplo, a definição do que é exactamente um país vulnerável). A China mostrou-se teoricamente solidária, mas indisponível para abrir os cordões à bolsa.

Já este sábado a União Europeia propôs a criação de um fundo para ressarcir perdas e danos sob certas condições. Mas, ao final do dia, a presidência da COP27 apresentava uma nova proposta assente na criação de uma comissão que, mais tarde, definisse os termos do fundo a criar.

Depois disso, discutia-se ainda se os fundos seriam destinados aos países “mais vulneráveis” ou aos “particularmente vulneráveis”. De novo, cada palavra importa e, neste caso, a alteração poderia ter como objectivo reduzir os candidatos aos possíveis apoios para compensar perdas e danos. Ainda assim, em termos de justiça ambiental, a simples abertura para negociar fundos climáticos – um tema que emergiu em 2013 e cuja discussão arrasta-se há quase uma década – já constitui um progresso no historial das COP.

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EPA/ Sedat Suna

A meta dos 1,5 graus em risco

Todos os anos, as cimeiras dedicadas ao clima resultam em documentos negociados ao mínimo detalhe pelos quase 200 países envolvidos. A formulação de uma simples frase pode exigir horas de discussão e implicar diferentes versões do texto inicial. Chegar a um denominador comum implica cedências, podendo ser sinónimo de aliviar obrigações, flexibilizar metas e até admitir recuos. Assim são os bastidores dos acordos internacionais e Sharm el-Sheikh não é uma excepção.

Foi preciso adiar o evento até este sábado para que se pudesse discutir uma construção textual que reconheça, entre outras coisas, que o planeta precisa “reduzir gradualmente todos os combustíveis fósseis”. Quem explora e vende gás e petróleo, como é o caso da Arábia Saudita e de outros países do Golfo, naturalmente não acha muita piada a esta formulação. E, por isso, faz pressão para que se opte por soluções menos abrangentes. Cada palavra importa no documento final.

O rascunho do texto divulgado pela presidência egípcia na sexta-feira, dia 18, apresentava uma referência apenas à redução gradual da energia a carvão (excluindo os outros combustíveis fósseis) – algo que já tinha sido acordado em Glasgow, no ano passado. Se o texto final não trouxer nenhum progresso em relação aos rascunhos apresentados até agora, isto pode significar que o progresso é quase nulo.

Há a expectativa que o texto final refira, pelo menos, uma redução progressiva dos subsídios aos combustíveis fósseis. Compromissos mais ambiciosos são necessários, alertam cientistas e ambientalistas, que insistem ainda que é essencial que se mantenha viva a meta de limitar o aquecimento global a 1,5 graus Celsius, acordada em Paris na COP15.

O regresso do Brasil

O Presidente eleito brasileiro, Luís Inácio Lula da Silva, funcionou como um íman em Sharm el-Sheikh: as suas intervenções atraíram dezenas de jornalistas e foram acompanhadas com entusiasmo pela audiência. Prometeu reverter o avanço actual da desflorestação na Amazónia e anunciou que é ali, num dos estados que abrigam a floresta tropical, que o Brasil quer sediar a COP30, em 2025.

Para vários líderes mundiais, a eleição de Lula simboliza um regresso à cooperação internacional e à possibilidade de deter a destruição da Amazónia. Só no ano passado, durante a presidência de Jair Bolsonaro, mais de 1,5 milhões de hectares de floresta tropical primária foram devastados.

Portugal no grupo do fim ao fóssil

Portugal tornou-se um membro do núcleo duro da Aliança para além do Petróleo e do Gás (BOGA, na sigla inglesa). Até agora, era apenas um membro associado desta organização criada no ano passado, na COP de Glasgow, pela Dinamarca e a Costa Rica. O principal objectivo desta aliança é a eliminação gradual da exploração de petróleo e gás.

Esta nomeação foi possível graças à aprovação, em Dezembro de 2021, da Lei de Bases do Clima. No diploma, Portugal compromete-se a “alcançar a neutralidade climática até 2050” e proíbe “novas concessões de prospecção ou exploração de hidrocarbonetos”.

A migração climática ficou esquecida

Num documento de trabalho para o texto final da cimeira, datado às 9h00 do dia 18 de Novembro, a palavra “migração” é mencionada duas vezes. Uma no que toca aos direitos humanos, incluindo outros grupos considerados vulneráveis, e outra numa recapitulação de conclusões do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla inglesa), que indicam que a redução de emissões é “essencial” para “limitar a migração forçada”.

Nenhuma referência é feita aos migrantes climáticos no âmbito de compensação por perdas e danos, mesmo sendo o fenómeno preocupante já nos dias de hoje. Só em 2021, eventos climáticos extremos obrigaram mais de 22 milhões de pessoas a deixar as próprias casas.

“Se os refugiados climáticos serão capazes de beneficiar de quaisquer acordos potenciais para compensar perdas e danos relacionados com o clima dependerá de como seja desenhado um mecanismo de financiamento de perdas e danos. E ainda de como a compensação será direccionada e entregue, bem como da questão crucial de saber se os fundos alocados serão suficientes para atender à crescente necessidade”, afirmava ao PÚBLICO Steve Trent, director da Fundação Justiça Ambiental, antes de começar a COP. Ao que parece, o desenho deste instrumento de compensação climática deixou de fora os migrantes do clima.

Activistas com “vozes silenciadas”

Ao longo desta COP em solo egípcio, foram vários os casos de activistas ou participantes que afirmaram ter sido silenciados ou limitados na sua liberdade de expressão. A activista climática Svitlana Romanko, por exemplo, decidiu abandonar o Egipto, juntamente com outro activista, após interromper uma sessão com representantes russos ao acusá-los de crimes de guerra.

Romanko é fundadora da Razom We Stand, uma organização que pede o fim de investimentos em empresas russas de gás e petróleo. As credenciais de ambos foram suspensas. Também o editor de clima da BBC, Justin Rowlatt, foi convidado a sair da sala após perguntar se os representantes de Moscovo “iriam pagar pelo dano ambiental que causaram na Ucrânia”, refere o diário britânico Guardian.

Quatro activistas indígenas também tiveram as suas credenciais suspensas após interromperem uma intervenção do Presidente norte-americano, Joe Biden. Os manifestantes empunhavam um cartaz onde se lia “Pessoas versus combustíveis fósseis”. “Ficámos trancados do lado de fora, as nossas vozes foram silenciadas”, afirmou Jacob Johns ao Guardian.

A própria geografia da cimeira já diz muito sobre o espaço reservado à manifestação e ao activismo. Os eventos oficiais tiveram lugar em pavilhões debruçados sobre o mar Vermelho, ao passo que a zona dedicada aos protestos – sim, havia uma área especificamente designada para tal – ficava junto a uma auto-estrada, distante do recinto da COP27.

Um detalhe importante: quem quisesse protestar tinha de fazer um registo prévio e aguardar autorização. Isto porque, há cerca de uma década, as manifestações são proibidas no Egipto – o que nos leva à questão seguinte, dos direitos humanos.

Clima e direitos humanos são indissociáveis

Há uma intersecção entre a esfera da crise climática e a dos direitos humanos. E, nesse cruzamento, deparamo-nos com questões de justiça ambiental (os migrantes climáticos e a compensação por perdas e danos, por exemplo), mas também, no caso da COP27, com o contexto egípcio de repressão de todas as vozes discordantes.

Organizações de defesa dos direitos humanos estimam que o regime do Presidente Abdel Fattah al-Sisi mantenha presas cerca de 60 mil pessoas apenas por razões políticas. O caso mais notório é o do blogger egípcio-britânico Alaa Abd el-Fattah, que se destacou na revolta do Egipto, em 2011, e que levou à queda de Hosni Mubarak. Dois anos após a Primavera Árabe, Sisi, então chefe do exército, liderou a expulsão do primeiro Presidente democraticamente eleito do Egipto, Mohamed Mursi.

Após o golpe militar, multiplicaram-se detenções como a de Abd el-Fattah, que esteve em greve de fome desde Abril, como forma de protesto contra a própria detenção e as condições do estabelecimento prisional. No dia 6 de Novembro, dia em que arrancou a COP27, o blogger anunciou que pararia também de beber água, uma forma de protesto que pairou como uma nuvem sobre as conversações em Sharm el-Sheikh. Necessitou de intervenção médica e esteve à beira da morte. No dia 15 de Novembro, el-Fattah disse à família que quebraria a greve de fome. O caso só reforça a ideia, tantas vezes referida por activistas, de que clima e direitos humanos são faces da mesma moeda.