“Não percebo como cada cientista do clima não está a fazer desobediência civil”

Cientista da NASA deixou de andar de avião e diminuiu radicalmente as suas emissões de carbono. Hoje, defende a desobediência civil como a melhor ferramenta na luta pelo clima.

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Peter Kalmus é uma das vozes mais fortes vindas da comunidade científica norte-americana na luta contra as alterações climáticas. Na sua conta de Twitter, onde é muito activo, apresenta-se como: “Cientista do clima da NASA. Detido por proteger a Terra.” O investigador está associado a grupos como o Extinction Rebellion e Scientist Rebellion.

Num protesto a 6 de Abril último, o investigador do Laboratório de Propulsão a Jacto da NASA (Califórnia) algemou-se a uma porta do banco de investimentos JP Morgan Chase, no centro de Los Angeles, num acto de desobediência civil. “Estou aqui porque os cientistas não estão a ser ouvidos, estou disposto a arriscar-me”, disse, antes de ser detido pela polícia.

Desde 2006, quando se tornou “obcecado” pelo tema das alterações climáticas, o investigador, pai de dois filhos, fez de tudo para as combater: tentou convencer a universidade onde estudava a alterar a fonte da energia eléctrica; arriscou organizar manifestações sem grande sucesso; escreveu o livro Being the Change: Live Well and Spark a Climate Revolution (numa tradução livre, Ser a Mudança: Vive Bem e Desencadeia uma Revolução Climática, não está editado em Portugal) sobre a mudança que fez na própria vida. Mais: a última vez que andou de avião foi em 2012; foi um dos criadores da aplicação Earth Hero para as pessoas saberem que emissões produzem, como evitá-las e que ajuda a encontrar uma comunidade pelo clima; enquanto cientista, abandonou o campo das ondas gravitacionais para estudar os efeitos das alterações climáticas nos ecossistemas futuros.

Nos últimos tempos passou a recorrer também à desobediência civil na luta climática. “É a forma mais rápida de acordar as pessoas do que qualquer outra que eu tentei”, diz ao PÚBLICO, numa entrevista por Zoom que deu um dia antes do início da 27.ª Cimeira do Clima das Nações Unidas (COP27), que ainda se arrasta sem consenso em Sharm el-Sheikh, no Egipto. Sobre a cimeira, não tem grandes esperanças: “Não vejo quaisquer sinais claros de que a COP27 vá ser diferente da COP26, por isso digo que não há nenhum caminho viável para [nos mantermos abaixo de] os 1,5 graus.”

Qual foi o gatilho para se envolver com as questões do clima?
Tudo começou em 2006, era um pós-graduando em física quando ouvi uma palestra sobre o desequilíbrio energético da Terra devido às mudanças da composição da atmosfera [causadas pela emissão de gases com efeitos de estufa]. Na altura, ninguém queria falar sobre este tema, ninguém parecia estar consciente. Al Gore fez o seu filme Uma Verdade Inconveniente que acordou algumas pessoas. Mas para mim era muito estranho que houvesse um problema tão claro, planetário e ninguém parecia levar isso a sério. Fiquei bastante obcecado com isso.

O que fez?
Tentei que a Universidade de Columbia passasse a ter electricidade de origem renovável e não de origem fóssil. Descobri duas outras pessoas em toda a comunidade da universidade interessadas nisso. Um outro estudante e um professor. Mas a administração não tinha qualquer interesse. Fiquei muito surpreso.

Tinha dois filhos muito pequenos, nasceram em 2006 e 2008, e isso foi muito importante para a minha crescente consciencialização. Não era apenas sobre mim, era também sobre o futuro deles.

Por volta de 2010, depois de mudar para a Califórnia, tentei fazer uma manifestação na feira de Santa Mónica, uma marcha pelo clima, num sábado. Tinha cerca de 30 amigos e colegas, e enviei um email para eles, implorei, fiz tudo o que pude para conseguir que eles fossem a esta manifestação. Esperava que pelo menos aparecessem uns quantos, mas apareceram zero.

Em desespero, olhei para mim próprio. Bom, estou a queimar isto, [os combustíveis fósseis]. A cada ano parecia-me pior estar a contribuir para este problema. Foquei-me em reduzir as minhas próprias emissões e compreender como a minha vida diária estava a contribuir para o aquecimento global.

Como foi esse processo?
Comecei a andar de bicicleta e a cortar as minhas viagens de avião. O último voo que apanhei foi em 2012. Tornei-me vegetariano, comecei a cultivar muitos alimentos, o que não deve ter baixado muito as minhas emissões, mas foi uma das coisas mais prazerosas. Senti que estava a desacelerar a minha vida, a reconectar com a Terra de muitas formas e a encontrar uma comunidade. Comecei a envolver-me com activistas locais. Foi isso que me levou a escrever o meu livro. Em 2012, acabei de reduzir as minhas emissões no que podia, para um décimo [da média norte-americana].

Isso foi há 10 anos e, desde aí, aconteceu muita coisa na minha forma de pensar. Ao longo deste tempo tornei-me um organizador bastante bom e a apatia do público decresceu bastante. Por isso, agora em 2022 faz muito mais sentido organizar activistas, usar a desobediência civil e aumentar esta voz colectiva.

Porque foi importante olhar para si próprio?
Primeiro, achei realmente interessante. Foi bastante fácil fazer as estimativas iniciais da quantidade de dióxido carbono que estava a emitir a partir da minha alimentação, de guiar, de voar, de queimar gás natural na minha casa, de cozinhar, de comprar coisas. Isso foi a fundação da aplicação Earth Hero, começou como uma forma das pessoas perceberem como é que as suas acções diárias estavam a contribuir para o aquecimento global. Depois, tornou-se muito mais do que isso. Começámos a criar acções na aplicação para o engajamento, o protesto e para mudanças culturais.

Também foi interessante aperceber-me como a minha própria vida se encaixava neste sistema que nos pastoreia a queimar combustíveis fósseis. A maioria de nós não cultiva a própria alimentação, por isso vamos ao supermercado, compramos coisas. Para ir ao supermercado talvez usemos o carro. Talvez tenhamos um trabalho que espera que usemos o avião para ir a reuniões. Queremos ter luz na nossa casa por isso conectamo-nos à rede eléctrica e muitas vezes não temos muito controlo em como essa electricidade é produzida. Antes, não compreendia como é que estava ligado a estes sistemas e como eles estavam a contribuir para o aquecimento global. Isso foi fascinante.

Como é que surgiu o livro?
Em 2012, a maioria das pessoas dizia [sobre a redução das emissões]: “Ah, isso vai ser um sacrifício enorme.” Mas achei realmente divertido e interessante, e foi isso que me compeliu a escrever o livro. As duas grandes mensagens que eu queria passar eram qual é a ciência das alterações climáticas e dizer ao mundo que reduzir as próprias emissões não era apenas uma questão de sacrifício, há muitas coisas boas, divertidas, satisfatórias.

Quando estava a escrever, tinha uma ideia ingénua que iria ter impacto no mundo, que iria produzir uma mudança positiva e ajudar a parar o aquecimento climático. Não sabia quantas pessoas é que iriam ler o livro, nem quantas iriam realmente tentar alguma das coisas que sugeri. É tão difícil escrever um livro que é preciso acreditar que ele é importante. Depois, quando o livro foi editado, as vendas foram incrivelmente baixas. Na comunidade, as pessoas vinham falar comigo e estavam interessadas nisso, mas muito poucas estavam dispostas a tentar fazê-lo também. Apercebi-me que tinha de fazer muito mais. Reduzir as nossas emissões a um nível pessoal não vai, de longe, mudar as coisas suficientemente rápido. Estamos numa emergência tão profunda... Mas, ao mesmo tempo, sentia-me mal em não o fazer.

Porque deixou de viajar de avião?
Quando apanhei o meu último voo em 2012, senti-me realmente mal, estava a pensar nos meus filhos, que tinham quatro e seis anos na altura, senti-me incrivelmente egoísta e sujo em estar naquele avião. Pensei: “Não gosto desta sensação. Sinto-me nojento. Sinto que estou a melhorar a minha carreira à custa dos meus filhos e dos outros jovens.”

Alguma vez saiu dos Estados Unidos desde então?
Fui ao Canadá algumas vezes e ao Havai (o que não é sair dos Estados Unidos) num navio de mercadorias, isso foi parte do trabalho de investigação científica. Mas desde então nunca mais fui à Europa. Adoraria ir ver a floresta da Amazónia e a Grande Barreira de Corais, porque actualmente estudo corais. Sonho em fazer isso algum dia num veleiro. Mas estou bastante feliz nos Estados Unidos, vou muitas vezes aos parques nacionais. Não me sinto preso por não andar de avião. E estou tão ocupado com a ciência e o activismo que me sinto satisfeito em muitos aspectos.

A comunidade científica está a fazer o suficiente em relação às alterações climáticas?
Não. Não percebo como é que cada cientista do clima não está a fazer desobediência civil e a arriscar ser detido. Antes de fazer desobediência civil, tinha realmente medo de o fazer. Tinha de escavar fundo dentro de mim e encontrar coragem para isso. E talvez essa seja a barreira que impede muitos cientistas.

Há algo tão estranho acerca dos humanos neste momento. As normas sociais como mantermos os nossos trabalhos, sermos respeitados socialmente, todos estes aspectos sociais que fazem com que não queiramos fazer desobediência civil, parecem ser tão fortes e persuasivas. No entanto, estamos a deslizar para uma situação irreversível de degradação da habitabilidade do nosso planeta, o único planeta que tem vida. Milhares de milhões de pessoas podem morrer, podemos perder toda a civilização como a conhecemos, e ainda assim não estamos, sequer, dispostos a partir uma janela.

Estava a pensar no tipo de acções que faço, como algemar-me a uma maçaneta e como seria difícil partir uma janela. O que é estranho, porque estamos num processo de perder muito mais do que uma janela. [Parte de] o Paquistão esteve sob água. Vamos começar a ver ondas de calor onde morrem um milhão de pessoas ao longo de uma semana. Vamos ver o preço da alimentação a aumentar globalmente devido a más colheitas e a fome a tornar-se recorrente no Sul global. Não é mais uma questão sobre se isso vai acontecer, mas quando vai começar a acontecer. Todos os anos piora.

No entanto, tendemos a dar um desconto ao significado do aquecimento global irreversível. Mas não aos aspectos sociais. É ver a forma como as activistas da sopa foram tratadas. Atiraram sopa às pinturas, não as danificaram. Mas causaram todo este alvoroço, porque pisaram uma fronteira social. Que é algo invisível e elusivo. E, no entanto, para os nossos cérebros, é muito mais real do que produzir alimentos neste planeta, ou evitarmos ondas de calor mortais, ou não deixarmos todas as linhas costeiras e ilhas-nações ficarem submersas. Mas isso é que é real, só que de alguma forma para os nossos cérebros estas normas sociais parecem mais reais.

Por isso, acho que cada cientista climático que sabe o que vem aí deveria estar lá fora, pelo menos a protestar, e provavelmente a arriscar-se a ser detido. Porque os riscos são tão tremendamente altos, não apenas para a nossa espécie, mas para toda a vida na Terra.

O que se alcança com a desobediência civil?
Não é totalmente claro. É uma experiência. Mas é a forma mais rápida de acordar as pessoas do que qualquer outra que eu tentei. Não consigo pensar em nada melhor neste momento. Partir janelas provavelmente não funcionaria tão bem agora. Mas talvez iremos chegar a esse ponto. É preciso ser cauteloso. É preciso fazer acções que tenham risco mas que sejam legíveis para a sociedade em geral.

Houve um budista que se imolou num protesto pelo clima na escadaria do Tribunal Supremo e acabou por morrer. Eu não faria isso, prefiro ficar vivo e continuar a lutar tanto quanto possível. Mas não há uma forma mais forte de protesto do que aquela. No entanto, foi um acto ilegível para a sociedade. Porque a sociedade não reconheceu ainda que isto é uma emergência. Basicamente ele foi ignorado. E que tragédia, para ele, que sacrificou a sua vida de uma forma tão dolorosa para ser ignorado.

Isso mostra que é preciso ser radical e assumir riscos, mas é preciso fazer de uma forma que não seja invisível para a sociedade. Neste momento, a desobediência civil é o ponto ideal. Há dois anos, os estudantes a fazerem protestos às sextas-feiras era o ponto ideal. Hoje, isso já não tem qualquer impacto. Agora os jovens estão a arriscar serem detidos. Estão a falar do coração e a fazê-lo porque estão desesperados. Na realidade, eles querem ter um futuro neste planeta.

Haver cientistas a fazerem essas acções é realmente importante. Dão um peso a estes protestos. Talvez seja mais difícil ignorar. Não sei se é suficiente. Mas neste momento é o melhor que posso fazer.

Foi um dos signatários iniciais da carta aberta lançada pelos Scientist Rebellion, que já conta com centenas de assinaturas de investigadores de todo o mundo. Um dos objectivos da carta foi “tornar claro a inevitabilidade de não conseguirmos ficar abaixo dos 1,5 graus Celsius”. Qual é a importância das pessoas compreenderem isso?
Não usaria a palavra “inevitável”, diria que já não há um caminho viável para ficarmos abaixo dos 1,5 graus quando se coloca na equação a sociedade e as políticas. Os 1,5 graus eram uma narrativa demasiado confortável. Foram falados como um nível seguro – o que acho errado, já estamos num território muito perigoso e os 1,5 graus vão ser bastante catastróficos. Poderíamos sempre esperar por mais um ano para começar a lidar com isso, outro ano e em seguida mais um. Por isso, havia este nível de procrastinação geral que estava a acontecer.

Neste momento não vejo qualquer caminho viável para os 1,5 graus. É a indústria fóssil que está a causar esta catástrofe e nem sequer começámos a acabar com ela, ainda estamos a expandi-la. Mesmo nos Estados Unidos há novas perfurações a acontecer. Há esta correria para gastar todos os combustíveis fósseis. A invasão da Ucrânia, em vez de levar a um repto por parte dos líderes mundiais para o fim dos combustíveis fósseis e para a mudança para as energias renováveis, fez com que se gastassem os combustíveis fósseis o máximo possível a nível doméstico. Por isso, continuamos na direcção errada.

Se fossemos na direcção certa e se tivéssemos um plano, um tratado internacional, fundos de perda e dano para o Sul global, se nacionalizássemos a indústria fóssil… Mas estamos incrivelmente longe do que precisamos para sairmos desta emergência, que é acabarmos com a indústria fóssil.

O que espera da COP27?
Acho que vai ser muito semelhante à COP26 e à Cop25 e à COP24 e à COP23... Eles aceitaram apoio da Coca-Cola. A indústria do combustível fóssil foi a maior delegação na COP26. Não vejo quaisquer sinais claros de que a COP27 vá ser diferente da COP26, por isso digo que não há nenhum caminho viável para 1,5 graus. Se tivéssemos sido sérios há dois anos, e impuséssemos um fim à indústria fóssil de modo a que ela acabasse no Norte global até 2030, então diria que seria viável.

Finalmente, o que investiga?
Estou a usar modelos para compreender como projecções de factores como a temperatura do ar à superfície, a humidade superficial e a temperatura superficial do mar vão ter impacto nos recifes de corais no futuro. Na via que estamos a seguir é improvável que haja recifes de corais no planeta a partir de meados deste século. Pelo menos, não como os conhecemos agora, porque os oceanos vão se tornar demasiado quentes. Também estou a usar esses métodos estatísticos para olhar como é que o calor húmido extremo vai afectar as populações humanas nas próximas décadas.