Clima obrigou mais de 22 milhões de pessoas a deixar casas em 2021

À medida que as migrações motivadas pelo clima se intensificam, há uma urgência em esclarecer a definição de “refugiados climáticos” e colocar em prática um mecanismo internacional que os proteja.

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Mulher somali deslocada internamente após secas severas na Somália em 2022 Reuters/FEISAL OMAR

O activista ugandês Nyombi Morris viajou para Sharm el-Sheikh com a esperança de partilhar a sua história de migrante climático na Cimeira do Clima das Nações Unidas, que decorre até 18 de Novembro no Egipto. “Nós merecemos atenção”, diz ao PÚBLICO o jovem que, em 2008, ficou desalojado após as cheias que destruíram cerca de 400 casas no distrito de Butalela, no Uganda. Aos dez anos, Morris foi obrigado a mudar-se com a família para a capital, Kampala. “Foi assim que descobri a crise climática”

Há um consenso quando se fala de movimentos migratórios causados pela crise climática: o número de pessoas que terão de abandonar as próprias casas nas próximas décadas tende a aumentar. O mais recente relatório do Internal Displacement Monitoring Center (IDMC) mostra que, só no ano passado, 22,3 milhões de pessoas se deslocaram em resposta a desastres associados ao clima. A média anual registada entre 2008 e 2020 era de cerca 21 milhões. A família Morris faz parte desta estatística.

“As pessoas em todo o mundo já estão a ser deslocadas por causa da emergência climática. Desde famílias a fugir da seca na Somália a comunidades inteiras empurradas pelas cheias no Paquistão, está muito claro que, na prática, a era dos deslocamentos climáticos já começou”, afirma ao PÚBLICO Steve Trent, director da organização não-governamental britânica Fundação para a Justiça Ambiental (EJF, na sigla inglesa).

Como tantos outros activistas na área do clima e dos direitos humanos, Steve Trent acredita que, se falharmos “na protecção e no apoio aos refugiados climáticos”, estaremos a abrir caminho para uma “crise humanitária crescente”. Isto além de erodir “as conquistas feitas” até hoje em matéria de direitos humanos e de fracassar nos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (ONU).

O peso legal da palavra “refugiado”

Se há um consenso sobre a intensificação das migrações climáticas, o mesmo não acontece na designação das pessoas envolvidas neste fenómeno. Steve Trent usa sempre a expressão “refugiados climáticos”, mesmo sabendo que esta terminologia não é unânime. Trata-se de uma escolha informada: a insistência no termo sublinha a urgência de colmatar, legalmente, as lacunas de protecção a este grupo vulnerável.

No domínio do direito internacional, o termo “refugiado” está associado a um instrumento legal específico: a Convenção sobre o Estatuto de Refugiado de 1951, cujo protocolo foi revisto em 1967. Uma pessoa que é alvo de perseguição política ou racial, por exemplo, e que pede abrigo a uma das cerca de 150 nações signatárias, pode passar a beneficiar de direitos específicos se lhe for concedido o estatuto de refugiada.

Contudo, aqueles que migram porque perderam tudo após uma cheia colossal, por exemplo, não estão cobertos por este acordo celebrado há mais de 70 anos, quando a crise do clima ainda não era uma preocupação global. E daí que diferentes organizações internacionais não usem a expressão “refugiado climático”, preferindo soluções como “migrante climático”, “deslocado ambiental” ou “pessoas deslocadas por causa das alterações climáticas”.

O Alto Comissariado das ONU para os Direitos Humanos é uma das entidades que não usam a palavra “refugiado” no contexto da crise climática. “É um termo muito usado e que pode fazer sentido na linguagem comum. Mas, estritamente do ponto de vista legal, é errado. Não usamos esta terminologia”, explica ao PÚBLICO o jurista Benjamin Schachter, responsável pela área dos direitos humanos e do clima naquele órgão da ONU.

O termo “refugiados” tem sido usado pelo menos desde 1985, quando Essam El-Hinnawi, especialista da agência da ONU para o Ambiente, descreveu como “refugiados ambientais”, num documento oficial, as pessoas “forçadas a deixar seu habitat tradicional, temporária ou permanentemente, por causa de perturbação ambiental”.

Em 2018, contudo, o Conselho de Direitos Humanos da ONU indicaria que o termo “refugiados” não se aplica aos migrantes climáticos, uma vez que, na prática, estes não têm acesso às mesmas protecções legais. No mesmo ano, a ONU adopta a resolução do Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular, onde está escrito, preto no branco, que um dos factores que causam movimentos de pessoas em grande escala são “os impactos adversos das mudanças climáticas e da degradação ambiental”, incluindo desastres naturais, desertificação, degradação dos solos, seca hidrológica e aumento do nível do mar.

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Vítimas de cheias tentam fugir agarrando nas barras laterais de um helicóptero militar na província de Punjab, Paquistão, em 2010 REUTERS/ADREES LATIF

Tanto na esfera mediática como no discurso público, a expressão “refugiado climático” tornou-se popular porque consegue transmitir experiência ontológica de quem se vê obrigado a fugir da comunidade onde deveria estar seguro – o sofrimento, a perda de referências, a vulnerabilidade, o medo da morte. A palavra refugiado encapsula a empatia para com aquele que é empurrado para um exílio forçado e, por um questão de paralelismo, terá sido trazida para do campo linguístico da crise do clima.

O próprio secretário-geral da ONU, António Guterres, recorreu ao termo “refugiado” para invocar a necessidade de proteger quem tudo perde após um evento climático extremo. “A mudança climática é agora considerada o principal factor que acelera todos os outros de deslocamento forçado. Essas pessoas não são verdadeiramente migrantes, no sentido de que não se moveram voluntariamente. Como deslocados forçados não abrangidos pelo regime de protecção dos refugiados, encontram-se num vazio legal”, referiu Guterres num discurso em 2011, quando ocupava o cargo de alto comissariado da ONU para os refugiados.

Esta apropriação de um termo legal parece condensar a ideia, muito discutida na Cimeira do Clima (COP27) que decorre no Egipto, de que é preciso compensar financeiramente os países que, apesar de pouco terem contribuído para o aquecimento global, estão a ser devastados por episódios climáticos severos.

“Há outra dimensão no debate em torno da terminologia que é centrada na justiça ambiental: os 50 países menos desenvolvidos do mundo contribuíram juntos com menos de 1% das emissões globais de carbono antropogénico [causados pela mão humana], enquanto os 10% mais ricos contribuíram com cerca de 50% do carbono que está a aquecer o planeta”, observa Steve Trent, numa resposta enviada por email.

Uma nova moldura legal?

A exemplo de outras ONG, a Fundação para a Justiça Ambiental defende a criação de uma moldura legal internacional que dê “realmente” resposta aos desafios dos “refugiados climáticos”. A reivindicação consiste na criação de um instrumento “completamente separado da convenção de 1951”. Isto porque, “num mundo cada vez mais xenófobo” e com “fronteiras militarizadas”, “há muitas pessoas que não querem estender os direitos de asilo aos refugiados climáticos”, argumenta Steve Trent, para quem seria um erro renegociar o estatuto de refugiado assinado em Genebra há sete décadas.

“Embora alguns pequenos passos, como a elaboração do Pacto Global sobre Migração não vinculativo, tenham sido dados para reconhecer o impacto da crise climática na aceleração dos deslocamentos, a triste verdade é que hoje a comunidade internacional está a falhar completamente em abordar ou antecipar esta crescente crise humanitária”, afirma o director da Fundação para a Justiça Ambiental.

O novo estatuto deve, para Steve Trent, abraçar todo o arco da experiência migratória forçada. E o que isto quer dizer? Significa que a protecção legal deve abranger desde os deslocamentos de populações motivados por um evento climático extremo e repentino – um ciclone, por exemplo – até às migrações impulsionadas por processos lentos de degradação associados ao clima.

Imaginemos uma comunidade costeira que depende da agricultura como meio de subsistência. Se este grupo vê as áreas de cultivo e criação de gado serem paulatinamente afectadas pela subida do nível das águas, e pela consequente salinização, haverá um momento em que as famílias concluirão que a vida ali se tornou impraticável. São estes processos morosos, que começam com uma colheita escassa, ou pela diminuição do gado saudável, que a fundação britânica quer ver também reconhecidos numa moldura legal capaz de articular crise climática e movimentos migratórios.

Os ambientalistas reivindicam ainda que, caso estas comunidades desejem ficar nas suas terras, os meios de financiamento por perdas e danos também devem garantir apoio às vítimas do clima. O objectivo é que estas populações possam tomar decisões “seguras e dignas” sobre o próprio futuro e o das suas famílias, conclui o relatório Não Há Abrigo para a Tempestade – A Necessidade Urgente de Reconhecer e Proteger os Refugiados Climáticos.

Benjamin Schachter concorda que é fundamental construir “caminhos sustentáveis ​​e duráveis ​​para uma migração segura”, nos quais os direitos humanos sejam plenamente assegurados, mas tem dúvidas sobre a necessidade de criação de uma nova moldura legal.

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No final de Outubro de 2022, a ONU contabilizava 661.920 refugiados oriundos da Somália, como a família da imagem Thomas Mukoya/Reuters

“Já existe um Pacto Global sobre migração, que inclui disposições específicas relacionadas aos direitos dos migrantes afectados pelas mudanças climáticas e outras formas de desastres ambientais. Acho que precisamos de muito mais recursos e colaboração para implantar o Pacto Global, é certo, mas nós já temos um instrumento que aborda muitas dessas questões. Há também o Quadro de Sendai para a Redução de Riscos de Desastres, que é uma estrutura fundamentada na lei de direitos humanos”, afirma ao PÚBLICO o responsável do Alto Comissariado da ONU, numa videoconferência a partir de Genebra.

Diferentes agências da ONU, incluindo a Organização Mundial da Saúde, têm sublinhado a importância de os Estados desenvolverem políticas de migração que “assegurem a participação plena e efectiva dos migrantes como titulares de direitos” mas os textos, cuidadosamente elaborados, não usam a palavra “refugiado”.

Conflitos e crise climática de mãos dadas

Enquanto o debate sobre a protecção legal deste grupo vulnerável avança lentamente, multiplicam-se os eventos climáticos extremos e, claro, as populações afectadas em diferentes países. Peguemos o exemplo da Somália: desde 1990, o país enfrentou mais de 30 emergências relacionadas com o clima, tais como seca extrema, inundações severas e pragas de gafanhotos. Este número representa o triplo de eventos do género ocorridos entre 1970 e 1990.

Só em 2020, 919 000 pessoas foram deslocadas pelas cheias e 144 mil hectares de solo agrícola foram devastados. A Somália enfrentou estes desafios num ano de pandemia, em que houve perturbações na cadeia de abastecimento global e dos programas de ajuda humanitária e saúde pública. Calcula-se que haja três milhões de somalis deslocados internamente, refere um relatório da EJF, sendo que pelo menos 642 mil procuraram refúgio em países próximos. Como a Somália é simultaneamente palco de conflitos e desastres climáticos, parte destas populações em movimento foi capaz de conseguir um estatuto de protecção.

No final de Julho de 2021, o Alto Comissariado para os refugiados contabilizava 520 mil refugiados no Quénia. Quase metade desse total está alojada no complexo de refugiados de Dadaab (no Nordeste queniano), um dos maiores centros do mundo para o efeito. Muitas das crianças que ali vivem já nasceram no local e nunca conheceram outra terra além do acampamento sobrelotado a que chamam de casa. Uma avaliação das condições do complexo, realizada há dois anos, mostrou que 64% das famílias entrevistadas estavam a receber uma quantidade insuficiente de alimentos. Mesmo numa estrutura teoricamente preparada para proteger e dar dignidade a refugiados, o cenário descrito no relatório da EJF está longe de garantir todas as necessidades dos que ali habitam.

Gerir ou controlar as migrações?

Talvez seja o tempo de as nações começarem a gerir melhor os movimentos migratórios, em vez de controlá-los, recomenda autora britânica Gaia Vince, que publicou em Agosto o livro Nomad Century: How to Survive the Climate Upheaval no Reino Unido. Na obra – cujo título em português seria algo como “o século nómada: como sobreviver ao levante climático”, a escritora defende que, sendo o aumento da temperatura global inevitável, está na hora de os líderes mundiais tirarem a cabeça da areia e prepararem-se para responder, com a solidariedade que o momento impõe, à maior deslocação populacional da história da humanidade.

“Populações inteiras vão ter de migrar, e não apenas para a cidade mais próxima, mas também para outros continentes. Aqueles que vivem em regiões onde as condições são mais toleráveis, especialmente nações em latitudes a Norte, vão ter de acomodar milhões de migrantes enquanto, eles próprios, se adaptam às exigências da crise climática”, escreve Gaia Vince no seu livro.

A escritora britânica defende a criação de uma uma autoridade supranacional capaz não só de gerir os fluxos migratórios mas também de supervisionar a criação de novos pólos urbanos em paisagens a Norte do globo. Gaia Vince recorda que a migração forçada pode bater à porta de todos, incluindo famílias de classe média, munidas de diplomas universitários e privilégios, que num dado momento não conseguem mais contrair um empréstimo imobiliário, subscrever um seguro ou ter emprego. Sim, porque as próprias oportunidades de trabalho também vão migrar.

Vamos ter de desenvolver novos estilos de vida, diferentes maneiras de alimentar e alojar pessoas. As cidades serão inevitavelmente densas, antevê Gaia Vince, o que exigirá dos cérebros humanos soluções criativas e sustentáveis para problemas de saneamento, geração de energia limpa, poluição atmosférica, saúde pública e transporte. Paralelamente a todos estes desafios, as sociedades vão ter de processar novas georreferências emocionais e renegociar identidades ligadas à ideia de nação ou etnia.

O conceito de etno-nacionalismo não é apenas obsceno, também não faz sentido biológica, genética ou mesmo culturalmente. Precisaremos ver sociedades maiores e inclusivas nas quais as pessoas compartilhem propósitos e ideais comuns em torno de questões de melhoria da paisagem natural, da vida social e da sustentabilidade, assim como o aumento da produtividade económica nas cidades”, afirma Gaia Vince ao PÚBLICO.

Todos nós podemos ser refugiados ou migrantes climáticos em algum momento. Acho que à medida que um número cada vez maior de pessoas forem deslocadas por eventos climáticos extremos, os refugiados climáticos terão um estatuto legal reconhecido. Já houve até alguns precedentes judiciais interessantes”, recorda Gaia Vince, numa resposta ao PÚBLICO por email.

Precisamente porque este levante climático diz respeito a toda humanidade, Gaia Vince vê como única solução meter mãos à obra o quanto antes, para que possamos gerir os fluxo migratórios antes que se tornem esmagadores e trágicos. Para a autora, a migração não é o problema, mas sim a solução.

A activista ugandês Nyombi Morris é um exemplo disso. “Começar uma nova vida num novo lugar nunca foi fácil, mas agora estamos num mundo onde nem mesmo essa rota de fuga está à vista. Precisamos partilhar histórias para inspirar gerações a agir”, diz Morris.