Inspector Lisboa e o caso do enredo raptado
Eugénio Lisboa lanceta há décadas um bubão imaginário: o romance sem enredo. A última das teses é esta: por causa do Ulisses, de James Joyce, o romance português deixou de contar estórias.
Eugénio Lisboa lanceta há décadas um bubão imaginário: o romance sem enredo. Recentemente, a violência intensificou-se desde que assentou no blogue De Rerum Natura. A última das teses é simplistamente simples: por causa do Ulisses, de James Joyce, o romance português deixou de contar estórias; os imitadores falsamente fingem admirar o irlandês a bem do prestígio de parecerem bem lidos.
Embora não haja o menor indício de que, fora do crescentemente esguio mundo das Humanidades, o dar-se ares de “culto” impressione alguém, Lisboa pensa um tanto atavicamente que os leitores de hoje transportam na memória listas de livros “difíceis”. Mas num mundo em que os miúdos preferem textar-se uns aos outros e fazer maratonas no Netflix, lacunas de leitura não envergonham ninguém. Se eu dissesse a colegas de escritório que já li Ulisses duas vezes (ambas sem proveito), eles perguntar-me-iam, “Isso é bacano mas e o que é pensas dos efeitos especiais do House of the Dragon?”
No idílico Oitocentos, teriam predominado os romancistas que, “não confundindo complexidade com complicação, escreviam os seus romances para serem lidos pelo maior número de pessoas possível”. A lista – “Dickens, Charlotte Brontë, Dostoiewsky, Tolstoi, Tchekhov, Balzac, Camilo, Eça, Conrad, Colette, Stendhal, etc.” – é impecável mas problemática porque apaga a resistência que “clássicos” actuais encontraram quando se afirmavam. Cioso de dinheiro, Camilo certamente almejava chegar ao maior número de leitores dando-lhes o que queriam. Mas Eça, num plebiscito realizado em 1884 pelo jornal O Imparcial de Coimbra para averiguar os escritores vivos mais notáveis, ficou atrás de Camilo, Pinheiro Chagas e Latino Coelho. Depois de O Primo Bazílio, as resenhas aos seus livros oscilaram entre assim-assim e negativas. A Relíquia, o mais massacrado, foi preterido em prol dum livro hoje esquecido num concurso literário da Academia Real de Ciências. A mais virulenta resenha da vida de Eça incidiu sobre Os Maias, demolido por Fialho de Almeida. Que o “maior número” não quis saber desta obra-prima mede-se por a tiragem de 5000 exemplares ter demorado 15 anos a esgotar. José Régio punha a narração eciana (“entrecortada ou fragmentada”) abaixo da de Júlio Dinis (“sabe, porém, contar.”). Agora, Eça é porto de abrigo contra tormentas modernas.
Os russos, tão legíveis hoje em dia, causaram imensa resistência; numa carta de 1888, Antero de Quental deu a Oliveira Martins a opinião sobre Dostoiévski: “Li o russo, que me fez o efeito que sempre me tem feito o pouco que conheço dessa gente e é, proximamente, que são doidos e, o que é pior, doidos lúgubres. Não os estendo e acho neles um terrível desequilíbrio, um excesso de imaginação e sensibilidade, um nervosismo doentio, e ainda outra coisa que não sei definir e que me repele como tudo o que não consigo entender. Parece-me gente que fala sonhando.” Em 1940, Jorge Luis Borges, defensor do enredo, culpava os russos por terem dado ao romance liberdade para ser “informe”; depois deles, “nada é impossível”, mas essa “liberdade plena acaba por equivaler à plena desordem.” A legibilidade dos grandes romancistas oitocentistas é ilusão retroactiva, o resultado dum processo de aprendizagem de que hoje em dia estamos esquecidos. A “dificuldade” é um critério transiente: em 1952, a leitura de Húmus parecia “penosa” a Régio; hoje em dia, Raul Brandão é empolgante comparado com Alberto Velho Nogueira.
Em Portugal, Gervásio Lobato observou n’ Ocidente em Março de 1885: “O romance deixou-se dos enredos intrincados, das situações violentas, das aventuras emaranhadas, para se entregar às narrativas singelas e correntias, à monotonia sensaborona dum diário pacato da vida burguesa, terra a terra, sem complicações, sem enredos, sem casos extraordinários, a pretexto de realismo, de verdade, de ser o espelho fiel e insípido da vida contemporânea”. Lobato: joyciano avant la lettre, ou caixa de ressonância? Por volta de 1879, a pretexto do romance de estreia de J.-K. Huysmans, Zola destacou o seguinte: “Esta nudez de intriga é característica. O nosso romance contemporâneo simplifica-se cada vez mais, por ódio às intrigas complicadas e mentirosas; nele há uma vingança contra as aventuras, o romanesco, histórias da carochinha. Uma página duma vida humana, e basta para interesse, para emoção profunda e durável.” Fã que sou de paradoxos, oxímoros e contra-sensos, adoro a do romance contra o romanesco. Enfim, Huysmans fartou-se de estar sob a asa de Zola e atacou o mentor; como é que fez a revolta contra o naturalismo? Enchendo o romance com fantásticos, mirabolantes eventos? Mas isso teria feito demasiado sentido. Em 1903, num prefácio à 2.ª edição de Ao Arrepio, Huysmans denunciou a falsidade do processo naturalista de Zola, que se lhe afigurava tão artificial quanto os Palmeirins e Galaores que Cervantes desfez. “Por mais criativos que fôssemos, o romance poderia resumir-se nestas poucas linhas: saber por que razão o cavalheiro Fulano de Tal cometeu ou não cometeu adultério com a senhora Beltrana de Tal. Se quiséssemos ser distintos e revelar-nos como um romancista de alto gabarito, era fazer passar as trocas carnais entre uma marquesa e um conde; se, ao contrário, quiséssemos ser um escritor popular, um prosador a par de tudo, era arquitectar a intriga entre um enamorado pé-rapado e uma rapariguita qualquer; apenas o cenário diferia.”
Huysmans sensatamente perguntou-se porque é que o “real” tem a casmurra tendência para se manifestar melhor através do drama de adúlteros. Para ele, o problema do naturalismo não era o excesso de realismo, era o não ser ainda suficientemente realista; podia-se expurgar ainda mais, ser ainda mais vazio. Não seria igualmente ou mais realista a história dum solitário fechado em casa, farto do mundo, combatendo o tédio? Pensando que sim, relatou pouco mais do que a série de passatempos refinados e rebuscados que Des Esseintes usa para preencher a vazia vida. Não há personagens secundárias; é um catálogo, uma lista; sem desenlace, sem reviravoltas, é um prodígio do aborrecimento, chato como a “realidade”. Huysmans não queria ser radical, queria apenas levar o realismo ao limite, minimizando a ilusão de que as vidas seguem planos ordeiros.
Seguindo a versão de Lisboa, depois veio a decadência. Joyce não é tanto bête noire como a baleia branca que ele caça há décadas com a obstinação do Capitão Ahab, embora Joyce, para trocar de metáfora, seja fugidio como o Papa-Léguas. Mas embora Joyce tenha popularizado a ausência de enredo, ele próprio acompanhou e intensificou um processo em curso desde o século XVIII. O fim da “estória” tem a sua história. O “enredo” de Dom Quixote é uma manta de retalhos de episódios desconexos zombando dos enredos fantásticos da novela cavaleiresca. Mas os sucessores apanharam a dica e progressivamente expurgaram o romance do irrealismo. Clarissa enche 1000 páginas com uma criada tentando impedir o patrão de lhe meter as patas na virgindade, o que dificilmente é uma melhoria em relação a Ulisses; e se Daniel Defoe ainda sentia a necessidade de cativar com situações realistas mas raras, digamos Robinson Crusoe aprendendo a desenrascar-se numa ilha deserta, acabámos de ver que isso já parecia artificial para Zola. Joyce pegou na insinuante ideia de que a vida não tem enredo e levou-a às máximas consequências, relatando as 24 horas de duas personagens. Dado que o romance nasceu troçando do fantástico, cada época redefiniu a função dele como guerra ao enredo; Ulisses não é ponto de partida mas o culminar de duzentos anos duma demanda chamada “realismo”.
Se Joyce, afinal irrelevante, não existira, o romance teria continuado a desfazer-se do enredo. No caso português, devemo-lo aos críticos da revista presença (1927-40). João Gaspar Simões, que desamava Joyce, pregava que um romance devia contar coisas muito singelas, sem reviravoltas. Em 1936, uma diatribe contra a imaginação fez mais para demonizar o enredo do que Joyce, pouco lido no Chiado. Primeiro atacou o romance histórico, que encantava graças a pormenores exóticos e façanhas heróicas Anchor: “O homem comum desinteressou-se do passado. Visto que a história já não lhe contava lendas e façanhas, alguma coisa deveria suprir a sua curiosidade insatisfeita.” De seguida o elogio ao real: “O romance era bem o género que lhe convinha. Porque já não há heróis, dispensa a epopeia; o poema fatiga-o. Tem a imaginação cansada; a alma, em contacto com uma vida muito positiva, perdeu a faculdade de maravilhar; é o dia a dia que o arrebata, a luta das paixões, o homem em contacto com o próprio homem. Não se explica de outra maneira o aparecimento, no decurso de um mesmo século - o XIX - de um Balzac, de um Tolstoi, de um Stendhal, de um Dickens, de um Dostoiévski - verdadeiros criadores do romance moderno.”
Com o habitual pendor para emitir decretos, Simões restringiu o horizonte do romancista: “As obras-primas dos romances têm como assunto factos contemporâneos do romancista.” Assim, bloqueou as vias da fantasia, da ficção científica e do romance policial tão caro ao sr. Lisboa: “Mas se o passado remoto não é matéria das obras-primas do romance, o futuro é assunto que um romancista não poderá nunca tratar superiormente. Wells tentou-o. Tentaram-no os romancistas de imaginação - de falsa imaginação. Os de imaginação verdadeira - e a imaginação é uma memória deformada - não o tentarão nunca.” Aí está, verdadeiros romancistas, da verdadeira imaginação, contentam-se com narrar casos banais do dia-a-dia, tal qual os narrados por Simões em Pântano e José Régio em A Velha Casa.
Curiosamente, até Simões, o antigo camarada de Régio, achava Uma Gota de Sangue um nada parado devido ao excesso de auto-análise do protagonista, Lèlito. Em 1946 perguntou: Régio terá “imaginação suficiente para romper com a auto-análise e abraçar o romance de observação e de enredo?” Sendo Lisboa especialista na obra de Régio, decerto está a par da tristeza que este sentiu por não levarem A Velha Casa em grande conta; a par também de que uma razão foi a chateza que incutia nos críticos. Em 1967, Eduardo Lourenço ajuizava que, tirando Jogo da Cabra-Cega, “Romanescamente tudo o mais é decadência e diário disfarçado.” Régio reconhecia tais críticas; no diário insurgiu-se por lhe censurarem “certas lentidões a que chamaram excrescências, redundâncias, etc., considerando-as inexperiências e defeitos da obra.” O ritmo não se coadunava com o de romances contemporâneos: “É uma crónica demasiado fastidiosa.”
A seguir, os neo-realistas, se também não podiam com Joyce, nem por isso estavam esteticamente autorizados a extravagâncias imaginativas. A bem da “autenticidade” (vago valor estético), os presencistas resumidamente pensavam que o romance devia ser autobiografia disfarçada; para os neo-realistas, autenticidade implicava reportar o país real tal e qual era, sem deturpações da propaganda salazarista. Na rixa entre regionalistas e Régio-nalistas (para usar um trocadilho de Tomaz de Figueiredo), a imaginação manteve-se ostracizada da ficção portuguesa por décadas como um refugiado duma zona de guerra, bombardeada sem parar pela artilharia da “autenticidade”. Uma baixa foi o romance policial adorado pelo sr. Lisboa.
Reprova Portugal por não ter tido um Georges Simenon, mas Régio queixava-se de os críticos preterirem os seus lentos romances porque a moda não tolerava “senão o ritmo das novelas do Graham Greene e outras produções mais ou menos policiais”. Aqui reside um tópico tão apaixonante como pouco estudado. Os escritores de policiais usaram pseudónimos até aos anos 80, como que envergonhados. Diniz Machado fez-se passar por Dennis McShade; Modesto Navarro escondeu-se por detrás de “Artur Cortez”. Depois do premiado Páscoa Feliz, José Rodrigues Miguéis só aceitou a encomenda de Uma Aventura Inquietante se não tivesse de assinar com o próprio nome: esse ficava reservado para Literatura com L frondoso fazendo sombra ao folhetim. Porquê? A verdade é que os portugueses nunca foram produtores de narrativas, enredos, personagens cativantes; algo os impediu de criarem Drácula, Sherlock Holmes, James Bond. Já culparam a Inquisição por esta pobreza imaginativa, mas para mim a causa foi outra: uma sociedade feudal e hierarquicamente dividida prolongada até aos anos 80. A literatura, em vez de acompanhar a democratização do século XIX, permaneceu um sinal exterior da superioridade da elite letrada em relação às massas analfabrutas. Faltou a classe intermédia de Júlio Verne, Robert L. Stevenson, Emilio Salgari, obreiros decentes de narrativas bem montadas, empolgantes e não totalmente idiotas. Em Portugal, até há pouco a escolha era entre A Sibila e A Rosa do Adro, coitados de nós!
Por volta de 1960, aos presencistas e neo-realistas sucederam os apóstolos do nouveau roman francês. Esses, sim, fãs de Joyce, os primeiros a defenderem extasiantemente o abstruso, chato e desengonçado, tratavam-se de novatos na esteira de Vergílio Ferreira: Serafim Ferreira, Mário Dias Ramos, Artur Portela Filho, Alfredo Margarido, Ana Hatherly, António Rebordão Navarro, Eduarda Dionísio. Esta moda ainda mais estridentemente hostil ao enredo durou até 1980, impulsionada quando “os docentes universitários começaram a tomar de assalto a grande imprensa não académica”, como Lisboa diz. Nesta década áurea de minguantes suplementos literários, Eduardo Prado Coelho e Maria Alzira Seixo faziam a semanal vénia à obscuridade mal-enjorcada e A Centopeia estava na calha para ser o imprescindível clássico moderno em que ainda estamos à espera que se transforme.
Contudo, o mercado falou mais alto e preferiu antes uma safra de narradores que punha em prática o que em França se chamava le retour du récit: José Saramago, Mário de Carvalho, João de Melo, Lídia Jorge, Luísa Costa Gomes, Hélia Correia. Fernando Namora até jubilou em 1981: “Aos poucos se foram desacreditando os ‘narradores’, gente menor para género menor. A boa literatura estava não na ‘narrativa’ mas no faiscar da palavra.” Maldito por mais dum século, o romance histórico voltou em força; espalhou-se também o realismo mágico e tornou-se comum um tom brincalhão adverso ao “lirismo melancólico” (Saramago) de Régio, Vergílio e Carlos de Oliveira. António Lobo Antunes, um desconhecido sem padrinhos que, apesar da indisfarçada má vontade dos primeiros críticos (uma entrevista em 1979 começa com uma certa Lourdes Féria juntando-se aos “‘verdes de raiva’ com a facilidade e a superficialidade do produto lançado no mercado”), esgotava tiragens em menos de nada, é o exemplo cabal da total irrelevância da Universidade em orientar o “gosto” numa economia de mercado.
Acabado o feudalismo, a ficção portuguesa soltou-se de várias grilhetas e nunca foi tão diversa e inventiva como actualmente. Coexistem puros contadores com ficcionistas de índole ensaística; há finalmente policiais e até incursões em ficção distópica. Alguém cujo dogma penda demasiado para um lado ou para outro perderá muito boa ficção. Os escritores no activo nasceram a ver desenhos animados, a ler BD, a ir ao cinema e a seguir séries, estão encharcados da arte de narrar. Se lêem alguém, lêem saramago e Mário de Carvalho, cujos contos fantásticos são ensinados na escola. Também crescem a ler ficção estrangeira. Ulisses contará para aí com um milésimo percentual do que entra na formação do escritor contemporâneo, que é sobretudo um profissional que não quer afugentar o público.
Todavia, há fortes indícios de que o sr. Lisboa não o saiba. O ódio a Saramago é antigo e notório. Mas depreende-se do desdém com que os arrasa que também não leia os mais novos: “Os nossos jovens génios pensam que a literatura portuguesa começou no mês passado, com o aparecimento surpreendente de um romance de um amigo talentoso e só um nadinha analfabeto ou com um livrinho de poemas muito infractores de uma amiga com imenso ímpeto e só um bocadinho inculta, tudo gente que um prémio qualquer apaparicou e catapultou para a glo-glória.” Esta caricatura foi proferida em 2015 num discurso intitulado “José Régio 45 anos depois”. Lisboa, para quem Régio é o único e o último grande escritor português, vive em rancorosa frustração por Portugal obstinadamente discordar; uma cabala tem sempre um culpado: porque não os “joycinhos”? Presumivelmente, a falta de enredo resolver-se-ia se lessem mas é Régio; mas que ele tenha sido um dos que lutaram por manter o enredo no grau zero da imobilidade é uma daquelas ironias, virtude tão inglesa, que Lisboa, apesar de sete anos passados em Inglaterra, ainda não atingiu.
Em vez de repreender os outros por não fazerem os livros que eu quero, como se me devessem algo, termino com gratidão a um dos melhores narradores da actualidade. David Soares (n. 1976) tem garimpado o imaginário português para criar enredos intricados nos quais sobressaem elementos de mistério, terror e fantasia, usando linguagem refinada sem ser estrambólica, montando narrativas que são motores de fazer virar páginas. Infelizmente, Soares ainda não é tão famoso como os outros ficcionistas da mesma idade, mas A Conspiração dos Antepassados, Lisboa Triunfante, O Evangelho do Enforcado e Batalha constituem uma das obras mais originais deste século, uma obra que agradará a quem lê para também saber o que acontece a seguir.