Bruscamente Tennessee Williams para tratar a verdade nos dias de hoje
Carlos Pimenta encena o clássico Bruscamente no Verão Passado, numa parceria com o Ensemble e o Teatro Nacional São João. Com um tributo a Ana Luísa Amaral, tradutora da peça.
Num cenário despojado, um ecrã em fundo vai mudando de cor. Uma faixa com um jardim abstracto liga-o ao palco onde o drama acontece: estamos em Nova Orleães, final de Verão algures nos anos 30, na mansão de uma viúva rica, a Sra. Venable (Emília Silvestre), que pretende convencer o Dr. Cukrowicz (Pedro Mendonça) a lobotomizar a sobrinha Catharine (Bárbara Pais), companheira do seu filho Sebastian, falecido no ano anterior em circunstâncias violentas.
O que é que verdadeiramente aconteceu a Sebastian, homossexual não assumido, é a questão em cena. E quem é que detém a verdade sobre as circunstâncias da morte, e sobre o seu carácter?
São estes os temas da peça que Tennessee Williams escreveu em 1958, e que Joseph L. Mankiewicz levou ao cinema no ano logo a seguir, a partir de um argumento co-escrito com Gore Vidal, e com Katharine Hepburn, Elizabeth Taylor (ambas nomeadas para os Óscares em 1960) e Montgomery Clift nos protagonistas.
Foi este património simultaneamente literário, teatral e cinematográfico que Carlos Pimenta quis enfrentar, e actualizar, na co-produção do Ensemble – Sociedade de Actores e do Teatro Nacional São João (TNSJ), que esta quinta-feira tem estreia no palco da Praça da Batalha, no Porto, a partir de uma nova tradução da peça feita pela recém-desaparecida Ana Luísa Amaral (1956-2022).
“A peça tem vários temas, desde a lobotomia, que é muito próxima de nós – tivemos um Prémio Nobel nessa área [Egas Moniz, 1949] –, à homossexualidade”, e sobretudo “a questão da verdade, que me interessa muito e está muito actual”, disse o encenador aos jornalistas, no intervalo de um dos últimos ensaios de Bruscamente no Verão Passado.
Na peça de Tennessee Williams, Catharine tem a sua verdade sobre o que aconteceu a Sebastian, uma versão que choca irreparavelmente com a imagem que a Sra. Venable tem (e quer proteger) do seu próprio filho.
Num paralelismo com o mundo actual, Carlos Pimenta cita as várias “verdades” em confronto sobre a guerra na Ucrânia. Há os factos, e depois há as diferentes interpretações que cada um tem deles. “É isso que me interessa aqui: como é que nós, perante um determinado facto, fazemos a nossa interpretação e construímos a nossa verdade?”, avança o encenador, lembrando, a propósito, o papel das novas tecnologias na disseminação da informação, que leva a que, como também aconteceu com a pandemia da covid-19, surjam as narrativas inventadas e as diferentes teorias da conspiração, um quadro que o filósofo canadiano Pierre Lévy sintetizou na expressão “o universal sem totalidade”.
O contraponto de Mankiewicz
Sobre a ousadia de encenar uma peça assumindo também como ponto de partida o clássico de Mankiewicz, a produção de Hollywood que, com o seu elenco de luxo, permanece inscrita no nosso imaginário cultural – a faixa abstracta que margina o palco é o jardim da casa da Sra. Venable no filme, e os actores do Ensemble foram convidados a vê-lo, no início dos ensaios –, Carlos Pimenta admite que esse foi um risco calculado.
“Quem viu o filme de Mankiewicz tem esse imaginário muito presente; e a imagem do filme sobrepõe-se sempre à peça”, diz o encenador. Mas são imagens de um tempo passado, que eram aceitáveis em 1959 e já o não são nos dias de hoje – mesmo se os temas permanecem, noutro contexto. Daí que o desafio lançado aos actores tenha sido o de construírem “um acting actual, colocando as palavras nos dias de hoje, que é uma coisa que o teatro pode fazer e o cinema, o filme de Mankiewicz, já não”, justifica Carlos Pimenta. Acrescenta ter também optado pela “depuração do cenário precisamente para que os actores possam aparecer”.
“Quando há grandes textos, há normalmente grandes personagens, e isso significa grandes desafios técnicos para os actores”, acrescenta, elogiando o trabalho da sua equipa e do Ensemble, companhia com que vem trabalhando há mais de década e meia, e que já dirigiu em textos de Ibsen, Cocteau, Beckett e Virginia Woolf, entre outros.
Esta nova encenação de Bruscamente no Verão Passado tem por base uma tradução da poeta Ana Luísa Amaral, certamente “a sua última tradução teatral”, diz Carlos Pimenta, salientando a qualidade e a precisão do texto. De resto, a peça que agora sobe ao palco do São João (e que o TNSJ vai também editar em livro) “são as palavras do Tennessee Williams, mas também as da Ana Luísa Amaral”, realça.
Em paralelo com a carreira da nova produção, que irá ficar em cena no Porto até 27 de Novembro, Ana Luísa Amaral vai ser homenageada na noite do dia 26, no recital Diz Toda a Verdade mas Di-la Oblíqua, com selecção de poemas de Rosa Maria Martelo, direcção de Afonso Santos e a participação dos principais actores da peça.