E se os cientistas fizessem um boicote até reforçarmos o combate à crise climática?

Os cientistas andam há décadas a alertar para a destruição do planeta. Não serviu de muito. O veterano investigador Bruce Glavovic sugere uma grande greve que acorde os políticos.

Foto
Pinguim na Antárctida sobre um bloco de gelo a derreter Reuters

Eis uma opinião pouco popular, partilhada com o PÚBLICO pelo veterano cientista climático Bruce Glavovic: enquanto os decisores políticos não começarem a mostrar mais ambição no seu combate prático às alterações climáticas, os cientistas que estudam esta ameaça global devem parar de fazer investigação sobre o assunto. Os líderes mundiais já sabem, há muitos anos, que o problema das mudanças do clima é grave e deve ser combatido robustamente. Eles não precisam que se continuem a elaborar novos estudos ou relatórios do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), que, por esta altura, pouco ou nada dirão de novo.

Glavovic continua: o trabalho que os cientistas tinham de fazer para mostrar aos políticos que estes têm de fazer algo em relação à crise climática está concluído. Agora a bola está do lado dos decisores — e os investigadores devem encontrar formas porventura mais radicais de os pressionar, já que “apenas” provar cientificamente que estamos a ferir o planeta e atingir um ponto de não-retorno não tem produzido os resultados desejados. Estamos a ficar sem tempo para salvar a Terra e não podemos continuar a fazer mais do mesmo, se até agora este “mesmo” não tem surtido efeito.

Nascido em 1961 no Zimbabwe, Bruce Glavovic, que cresceu na África do Sul e hoje é professor e investigador na Universidade de Massey, na Nova Zelândia, é dono de um currículo extenso, que inclui dois relatórios recentes do IPCC, uma autoridade em matéria de mudanças do clima. Em entrevista ao PÚBLICO, o cientista climático diz orgulhar-se muito de ter podido fazer parte da história do IPCC — mas acredita que já não se justifica esta organização continuar a passar anos a elaborar relatórios que não fazem muito mais do que dar conta do progressivo agravar da situação.

“Não precisamos de mais seis ou sete anos de trabalho para dizer, novamente: ‘O mundo está a aquecer e tudo está a piorar.’ Já sabemos que sim. A janela está a fechar-se; não podemos perder mais tempo do que o que já se perdeu”, diz.

Foto
Bruce Glavovic David Wiltshire

IPCC: entre o “sucesso científico” e o “fracasso político”

Em 1988, a Organização Meteorológica Mundial e o Programa das Nações Unidas para o Ambiente criaram o IPCC com o objectivo de fazer a ponte entre cientistas climáticos e decisores políticos. A organização é composta por 195 Estados-membros, que vão tendo de eleger grupos de cientistas para trabalhar no IPCC. Estes grupos, que se mantêm juntos durante seis a sete anos, não fazem investigação. Em vez disso, passam os tais seis ou sete anos a ler o mais relevante de todo o conhecimento científico sobre alterações climáticas produzido nessa janela temporal.

As descobertas principais são resumidas criteriosamente nos famosos relatórios do IPCC, que têm milhares de páginas e vêm sempre com “sumários para formuladores de políticas”. Estes são os resumos dos resumos, por assim dizer; fazem um apanhado da dimensão do problema, procurando ajudar à tomada de decisões informadas.

Glavovic não hesita quando diz que, na sua opinião, o IPCC surge ligado àquela que é “a maior história de sucesso científico da humanidade”. Na década de 1980, recorda, argumentando, “a ciência mobilizou-se muito rapidamente” para compreender a natureza das alterações climáticas, uma ameaça que, cedo se percebeu, “poderia comprometer seriamente o bem-estar das pessoas e do planeta se não fosse combatida”. O IPCC foi criado para os decisores políticos conseguirem acompanhar esta vertiginosa e vital produção de conhecimento científico, pelo que foi de uma importância extraordinária, defende.

Aquilo que leva Glavovic a falar negativamente da organização nos dias de hoje é que não se pode passar pela “maior história de sucesso científico da humanidade” sem se passar também por aquele que é, nas suas palavras, um “fracasso político de proporções gigantescas”.

O investigador alude ao facto de neste momento o Egipto estar a acolher aquela que é já a 27.ª Cimeira do Clima da Organização das Nações Unidas (COP27). “Após 27 cimeiras para os líderes mundiais se reunirem e discutirem formas de combater a crise climática, temos de perguntar: que progresso é que fizemos para reduzir as nossas emissões de gases com efeito de estufa e aumentar a resiliência dos mais vulneráveis às alterações climáticas? A única resposta possível é que o progresso tem sido muito minúsculo.”

Glavovic sublinha que a inacção política frustra os cientistas climáticos, “especialmente aqueles que se envolveram nos esforços do IPCC para ajudar os políticos a tomar decisões mais informadas”.

Estes cientistas sabem que a crise climática é apenas uma de várias que neste momento compõem um “cocktail tóxico de problemas globais”, cada um dos quais exige atenção política — e pode, dada a sua natureza, tornar os compromissos climáticos menos ambiciosos. Sabem também que, “muitas vezes”, as negociações políticas são “condicionadas pelos interesses de um grupo reduzido de países, determinados em manter economias dependentes de combustíveis fósseis”.

“Mas não deixa de ser extremamente frustrante ver que, basicamente, a classe política comprometeu o clima e as gerações futuras”, frisa Glavovic. “Para cientistas que já trabalharam como consultores políticos, ou cuja investigação visa encontrar formas de se fazer algo em relação a este cocktail tóxico de problemas globais, a frustração é real e muito profunda.”

Foto
Em nações vulneráveis como Tuvalu (na imagem), as cheias estão a tornar-se uma coisa normal. O descontrolo climático desanima e frustra os cientistas MARIO TAMA/GETTY IMAGES

O falhanço do “contrato” ciência-sociedade

Bruce Glavovic, cujos três países onde mais trabalhou até agora são a África do Sul, os Estados Unidos e a Nova Zelândia, diz que existe um “contrato” metafórico entre a ciência e a sociedade que neste momento não está a ser honrado.

“As alterações climáticas são uma de várias áreas da ciência acerca das quais há dinheiros públicos a permitir o respectivo trabalho de investigação. Através do dinheiro dos seus impostos, as pessoas financiam a produção de conhecimento científico — esperando que este ajude à resolução de problemas que lhes dizem respeito”, explica, para depois argumentar que, devido à inacção política, ainda não chegámos à parte da resolução de problemas, o que quer dizer que o “contrato” entre a ciência e a sociedade para combater as alterações climáticas não tem saído do papel.

Daí o cientista ser crítico do IPCC, que, na sua óptica, manteve a mesma forma de trabalhar enquanto a crise climática evoluía, adquirindo proporções cada vez maiores. O veterano investigador reafirma que, na sua óptica, “não precisamos de mais relatórios que meramente dão conta do problema” e do seu aspecto cada vez mais medonho. “Já temos dados que cheguem. Agora precisamos de acção.”

Foi no Verão do ano passado que, num artigo escrito com os investigadores Iain White e Timothy Smith — e publicado na revista Climate and Development —, Glavovic falou pela primeira vez da ideia de os cientistas se unirem, boicotando o IPCC e, também, deixando de produzir estudos que apenas reforçam que o planeta está numa situação de grande fragilidade. Os três autores falavam no texto daquela que é a “tragédia da ciência focada nas alterações climáticas”.

Glavovic explica: perante a catástrofe ambiental, os cientistas climáticos sentem que devem demonstrar ainda mais inequivocamente que o planeta está a precisar de cuidados. Sentem que devem continuar a produzir conhecimento, “na esperança de que algo mude nas vontades e decisões políticas”. “Mas as pessoas estão cada vez menos optimistas”, afirma. “Duvido de que da COP27, ou de COP futuras, vá sair algo que não saiu de 26 cimeiras que já tivemos.”

“Podemos continuar a fazer ciência como de costume, mas tal não fará nada para mudar o rumo da história. Podemos voltar-nos mais para o activismo, mas ele ainda não demonstrou ser capaz de contribuir para uma mudança verdadeira. Concluímos, eu e os meus dois colegas, que precisamos de tomar uma posição ainda mais radical”, sublinha Glavovic.

Muitos colegas de profissão discordam profundamente da proposta dos três investigadores. Sentem que a frustração que resulta da inacção política não pode levar a que o evoluir da crise climática deixe de ser monitorizado. Mas Glavovic pensa que, havendo um boicote ao IPCC, a organização intergovernamental será obrigada a repensar o seu modus operandi e se transformar — o que poderá permitir que se torne mais útil.

“O IPCC foi um sucesso extraordinário. Mas foi um produto da década de 1980. O mundo mudou desde então e algumas pessoas parecem não o ver”, comenta, dizendo acreditar que, se os principais cientistas climáticos do mundo estiverem dispostos a pôr o trabalho do IPCC em pausa, tornar-se-á claro que o contrato ciência-sociedade “falhou”, necessitando, portanto, de ser “revisto” e renegociado.

Acompanhe a COP27 no Azul

A Cimeira do Clima das Nações Unidas é o ponto mais alto da diplomacia em torno das alterações climáticas, onde os países discutem como travar as emissões de gases com efeito de estufa que causam o aquecimento global. Este ano é no Egipto, de 6 a 18 de Novembro. Acompanhe aqui a Cimeira do Clima.

Frustração versus determinação

Que aspecto teria um IPCC reconfigurado e capaz de ajudar mais ao combate prático às alterações climáticas? Glavovic não finge saber responder à pergunta para um milhão de euros. Daí querer que os cientistas se juntem e, num debate “que não deixe ninguém de fora”, reflictam sobre qual o melhor caminho a seguir.

“Não sou a primeira pessoa a sugerir que, se calhar, relatórios mais a curto prazo (relatórios anuais, por exemplo) e com um foco mais regional podem ser mais valiosos”, assinala Glavovic, lembrando as cheias no Paquistão, que este ano afectaram mais de 33 milhões de pessoas. “É uma escala de impacto monumental. Talvez algo que se foque especificamente em abordar esse problema, por exemplo...”

Foto
Cheias no Paquistão ARSHAD ARBAB/LUSA

Ainda sobre o “foco mais regional”, Glavovic defende que trabalhar com comunidades locais e especialmente vulneráveis aos impactos adversos das alterações climáticos é neste momento mais importante do que produzir qualquer estudo. Neste momento, o investigador está envolvido num projecto neozelandês no âmbito do qual está a ajudar pessoas da comunidade maori a elaborar um plano de adaptação às alterações climáticas. “É um trabalho muito recompensador: consigo ver que estou a fazer uma diferença verdadeira nas vidas de pessoas reais.”

Glavovic admite que sente muita frustração por ver que os esforços dos cientistas não têm evitado um cenário profundamente negativo para o ambiente. Mas a sua frustração convive com um sentimento de “total determinação”. “Não é desespero; não estou a afogar diariamente as minhas mágoas em whisky. A destruição do planeta faz-me trabalhar ainda mais arduamente para ajudar comunidades locais.”