Os alunos de língua portuguesa e a língua portuguesa
As legítimas queixas de alunos brasileiros a estudar em Portugal poderão servir como indicação de que algo deve ser reconhecido e resolvido.
“Alencar interrompeu-os, exclamando que não eram necessárias tantas filosofias.
- Vocês estão gastando cera com ruins defuntos, filhos.”
Eça de Queiroz, Os Maias
O dilema de João Rodrigues, professor na Escola Secundária Rainha Dona Amélia, em Lisboa, relatado há uns meses no PÚBLICO, serve de mote para as três considerações que aqui trago. Queixava-se então Rodrigues de ter tido de penalizar alunos brasileiros em respostas escritas na “variante brasileira de português” que não correspondiam à “norma do padrão do português europeu”. Acrescentava o professor de Português que era revoltante ter de penalizar alunos, quando a expressão sintáctica estava correcta na variante brasileira. Por fim, Rodrigues confessava-se revoltado, sentindo também que estava a prejudicar e a discriminar os alunos. Convém que este testemunho sincero e concreto seja levado muito a sério por quem tem andado há muito tempo a dormir na forma com ilusões e a tapar o sol com uma peneira de abstracções.
Há uns anos, apresentei uma comunicação na Universidade de Évora, na qual mostrei e analisei diferenças lexicais, fonológicas, fonéticas e morfossintácticas entre o português europeu e o português do Brasil. Uma das críticas que me fizeram – e que imediatamente aceitei e reconheci – foi a de ter misturado (adrede, acrescento) registos formais e informais, isto é, pus na mesma panela alguns (poucos, acrescento) registos que seriam utilizados em sala de aula e registos meramente coloquiais. Respondi que o fizera intencionalmente, para suscitar o debate, mas agradeci a reprimenda e, felizmente, aprendi imenso com ela. Por esse motivo, trago-vos hoje as tais três considerações. Obviamente, apresento-as, partindo do princípio de que o Governo português, de facto, quer resolver este problema: de uma vez por todas.
A primeira consideração diz respeito à vontade política de resolver problemas. Esta vontade política inclui o doloroso reconhecimento de haver diferenças entre os vários portugueses que são falados no espaço lusófono. Quanto à dimensão e importância da diferença, reservo o debate para outros fora. No entanto, já que estudos académicos e exemplos do quotidiano sobre este assunto não interessam aos políticos portugueses, as legítimas queixas de alunos brasileiros a estudar em Portugal poderão servir como indicação de que algo deve ser reconhecido e resolvido.
A segunda consideração relaciona-se com a formação dos professores. Se, efectivamente, o Governo português quiser resolver o problema e, como sugere o Instituto de Avaliação Educativa (Iave), “abordar as variedades da língua portuguesa ‘no âmbito das aulas de Português'”, a solução é simples: deve dar-se formação aos professores das disciplinas em que, actualmente, a adopção da norma portuguesa europeia é obrigatória, para que estes possam avaliar correctamente o desempenho dos alunos falantes nativos dos vários portugueses que são falados em todo o espaço lusófono. Isto implica bastante tempo e, é claro, algum dinheiro. Mas também é nestes momentos que vemos a diferença entre a garganta (o discurso político) e o porta-moedas (o Orçamento do Estado).
A terceira e última consideração tem a ver com a reciprocidade. Nenhuma – repito, nenhuma – das minhas duas anteriores considerações terá qualquer validade se não houver medidas idênticas (ou semelhantes) tomadas por quem governa os outros países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Isto é, os alunos portugueses que estudarem nos outros países da CPLP deverão dispor exactamente das mesmas condições que os alunos de outros países da CPLP terão em Portugal, no âmbito das minhas primeira e segunda considerações.
A penalização de alunos, nestas condições, é de facto um problema extremamente grave e convém que a resolução seja rápida. Aproveito o ensejo para recomendar o seguinte ao actor político que executar estas minhas considerações/recomendações: pegue no Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) e deite-o fora. Ponha-o no caixote do lixo. É justamente por causa do logro da “unidade essencial da língua portuguesa”, conceito consagrado no AO90, que chegámos a esta situação ridícula e muito grave. Matemos dois coelhos de uma cajadada só e andemos para a frente. Avancemos.