Catarina Albuquerque: “A água tem sido esquecida nas Cimeiras do Clima”
Directora da parceria da ONU para a Água diz que “uma gestão justa da água” exige apenas coragem política. Mas é mais sexy acenar com tecnologias do que com restrições ao consumo.
Esta é a primeira Cimeira do Clima (COP27) em que o país anfitrião tenta “trazer a água para o coração das discussões climáticas”, diz Catarina Albuquerque, directora executiva da Sanitation and Water for All, uma parceria global das Nações Unidas (ONU). Apesar desta novidade, Catarina duvida muito que a negociação para compensar os países desfavorecidos por perdas e danos climáticos “chegue a algum acordo” em Sharm el-Sheikh, no Egipto, onde o evento decorre até 18 de Novembro.
O Egipto – que sofre com a seca hidrológica, tem limitações na rede de saneamento e vê este recurso natural de forma geoestratégica – apresentou em Sharm el-Sheikh uma iniciativa para fomentar uma acção climática voltada para a água e promover a cooperação pan-africana.
Num contexto global, Catarina Albuquerque defende que os decisores políticos e especialistas parem de pensar na água do planeta como um reservatório que serve, antes de mais, grandes sectores como a agricultura e a indústria. Para uma boa gestão deste recurso, argumenta, a distribuição deve ser “justa e inteligente” e “colocar as pessoas no centro das decisões”. A prioridade deve ser sempre para o consumo humano, o que inclui ligação à rede de saneamento para toda a população, sem qualquer excepção.
“Como político, é-me mais interessante falar de tecnologia, anunciar estações de dessalinização. É bem mais sexy do que dizer que a disponibilidade de água per capita vai diminuir nas próximas décadas e que vamos ter de fazer uma gestão hídrica mais rigorosa, dando prioridade às pessoas. Quem tem coragem de fazer isso?”, pergunta a jurista portuguesa nesta entrevista ao PÚBLICO por videoconferência.
Catarina Albuquerque foi a primeira relatora especial da ONU para a defesa do direito à água potável e ao saneamento. Fruto da sua liderança, o acesso a ambos foi reconhecido como um direito fundamental em 2010.
A COP27 está a dar muita atenção ao tema das perdas e danos. Há espaço para encaixar o saneamento e a água quando se fala de compensação climática?
A água tem sido um tema esquecido nas COP, tem havido dificuldades para discutir o tema em geral. A água não tem sido abordada como deve ser, mesmo sabendo que os maiores impactes das alterações climáticas se fazem sentir na água – ou temos água a mais ou a menos, seja através da seca hidrológica seja através das inundações. Em Glasgow, houve um pavilhão da água e discussões sobre o tema, mas no documento final não tivemos grande impacte. Agora, a presidência egípcia da COP27 quer trazer a água para o coração das discussões climáticas e criou a AWARe (Action for Water Adaptation and Resilience). [A iniciativa foi apresentada em Sharm el-Sheikh esta terça-feira, assinalada como o Dia da Água no programa da cimeira.]
Quais são os objectivos da AWARe, que resulta de uma parceria com a Organização Mundial de Meteorologia?
Esta iniciativa visa, entre outras coisas, apoiar políticas e métodos de adaptação para melhorar o abastecimento de água – diminuir perdas, por exemplo. E também promover a cooperação na área da água como fundamental para atingir todos os Objectivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030.
Por que razão o Egipto quis dar visibilidade ao tema da água?
Esta é uma questão importante para o Egipto, não só porque o país sofre com escassez de água, mas também por questões geoestratégicas e de política internacional. Há, por exemplo, o problema diplomático sério com a Etiópia por causa da barragem [do Nilo Azul, fortemente contestada pelo Egipto e Sudão]. É que a única água potável que o Egipto vem precisamente do rio Nilo.
Sendo a água crucial para a vida humana, por que razão este tema continua esquecido?
Quando falamos na água, há uma tentação para focar na chamada big water, ou seja, a gestão de recursos hídricos para a indústria, agricultura, natureza. Água para tudo, menos para as pessoas. Estou a falar de água para beber, cozinhar, higiene pessoal e doméstica, descargas de saneamento. Nas negociações do clima, também é frequente falarmos das enchentes e da seca sem falarmos especificamente das pessoas. Aquilo que tentamos fazer na nossa organização é justamente o contrário: falamos do direito humano à água para colocar as pessoas no centro da discussão.
Um exemplo: quando falamos de crise alimentar, estamos, na prática, a falar de uma crise de água – embora haja agora, é claro, a questão da subida dos preços dos fertilizantes em decorrência da guerra na Ucrânia. Não sei isto ocorre porque as pessoas são muito tecnocratas, científicas ou intelectuais – agora estou a ser mazinha –, mas o que é facto é que não colocam as pessoas no centro das discussões.
A escassez de água e a tensão ibérica na gestão dos rios internacionais foi notícia este Verão em Portugal...
Não gosto de falar sobre Portugal porque não sou especialista na matéria. Ouvi dizer que há zonas do país em que há falta de água existe uma tensão entre água para o turismo e para as pessoas; para a agricultura e para as pessoas. Se não há água suficiente para todos os usos que lhe queremos dar, aí sim, começamos a falar da água.
As pessoas esquecem-se de que temos hoje na Terra a mesma água que tínhamos no tempo dos dinossauros. A diferença é que havia um número menor de dinossauros do que há hoje de pessoas. A utilização de água per capita aumentou – porque compramos mais roupa, temos mais máquinas e ingerimos mais produtos que consomem muita água. Mas a água necessária para satisfazer o direito humano à água é menos de 10% do total da água no planeta. Isto significa que podemos fazer imenso nos sectores da indústria, do turismo e da agricultura para gastar menos água.
Como? Pode dar exemplos?
Temos de criar políticas públicas que criem incentivos para haver poupanças. Há um livro chamado The Big Thirst – the secret life and the turbulent future of water (Charles Fishman, 2012) que mostra como, em Las Vegas, nos Estados Unidos (EUA), onde a indústria do turismo se ergueu numa zona que é quase um deserto, foram colocadas em prática uma série de medidas para regular o uso da água. O preço da água é alto e, por isso mesmo, a rede hoteleira vê vantagem em substituir os chuveiros de todos os quartos e em adoptar sistemas de reciclagem da água para a lavagem de toalhas e lençóis. Antes, estes investimentos não valiam a pena. Há ainda os “detectives da água”: eu posso ter imenso dinheiro, mas eu não posso regar rosas nas alturas de maior seca. [O livro do jornalista Charles Fishman não está publicado em Portugal. O título pode ser traduzido como “a grande sede – a vida secreta e o futuro turbulento da água”.]
Um outro exemplo é a Austrália. Quantifica-se a água disponível no país, oriunda das diversas fontes (aquíferos, dessalinizada, etc.). Sabendo que têm de garantir um mínimo para as pessoas – e aqui não estou a falar de encher piscinas, mas sim o básico, como a higiene pessoal e a preparação de refeições, por exemplo –, o que sobra das necessidades humanas é que vai para outros fins. É assim que se calcula o que a agricultura tem direito. Cada agricultor tem direito a uma quota definida de água e fim. Não se pode comprar mais água porque ela simplesmente não está à venda. É um bem tão precioso e raro na Austrália que cada agricultor só tem direito a uma quota por ano.
Vê viabilidade para a aprovação do mecanismo de perdas e danos que também inclua a água?
O tema das perdas e danos é obviamente complicado porque aceitá-lo pode desencadear batalhas legais nos chamados “países ricos”. Parece que os EUA estão abertos a negociar este ano, mas será muito difícil que se chegue a algum acordo. E os países prósperos preferem comprometer-se com adaptação e resiliência.
A comunidade que trabalha com os direitos humanos, a água e saneamento está a focar as suas atenções e esforços de lobbying no tema da adaptação, nomeadamente para conseguir que tenhamos 50/50, [ou seja, metade do apoio] para adaptação e [a outra metade para] mitigação no sector. E que haja uma parte justa do financiamento para adaptação que seja dirigido especificamente para a realização dos direitos da água e do saneamento para as pessoas.
Temos também batalhado para que o financiamento para água e saneamento (os ODS 6.1 e 6.2, ou os direitos humanos a água e saneamento) não seja exclusivamente para infra-estruturas. Acreditamos que precisamos de investir em políticas públicas, planos nacionais, instituições fortes, orçamentos e estratégias de financiamento. São indispensáveis para o sector funcionar e a água de facto chegar a todos.
O investimento em novas tecnologias ligadas à água – como as centrais de dessalinização – é compatível com justiça social?
Aquilo de que realmente precisamos é apostar em boas políticas públicas. Políticos corajosos e boas políticas públicas – é isto que é mais raro e indispensável para termos uma gestão justa da água, não só para as pessoas de hoje, mas também para as gerações futuras. A tecnologia é obviamente importante – e ela já existe. Estive há algumas semanas em Nova Iorque e tive uma série de reuniões com embaixadores e o presidente da Assembleia Geral da ONU. Falou-se muito na importância de termos tecnologia e mais dados. Nós já temos acesso à tecnologia e, mesmo assim, continuamos a excluir determinadas pessoas do acesso à água e ao saneamento. Isto seja porque não as apoiamos financeiramente (ausência de tarifas sociais), seja porque estas pessoas moram em bairros informais que o Governo considera “ilegais” (logo não têm direito à água). Ou porque és um sem-abrigo e a culpa é tua, pois és um mandrião preguiçoso e nós vamos fechar os banhos públicos e as fontes de água. Então, não tenho dúvida aqui de que o problema da água é mais político do que tecnológico.
Se o conhecimento existe, por que temos dificuldade em transpô-lo para políticas públicas?
O escritor japonês Haruki Murakami tem uma frase que diz qualquer coisa como: se tu pertences à maioria, podes evitar pensar numa série de coisas que são incómodas. Acho que a questão do acesso ao saneamento e à água é incómoda. Nos países que visitei, há ministros com quem falei que expressavam desconforto por eu estar a falar dos direitos das pessoas que vivem em bairros de lata, favelas, que pertencem a minorias étnicas, que são imigrantes sem papéis. É incómodo, não queremos falar sobre isso. Então, não há políticas públicas para essas pessoas, pois preferimos pensar na maioria. Por fim, acho que é preciso coragem política.
O incómodo diz apenas respeito ao acesso dessas minorias ao saneamento e à água? Ou também está ligado à dificuldade de criarmos políticas a pensar nas excreções humanas?
Quando comecei a trabalhar nestes temas, eu própria tinha alguma dificuldade. Fomos educados a não falar de xixi e cocó à mesa. Então, quando tinha almoços com ministros, passava todo o almoço a falar de água e deixava o saneamento para depois do café. Logo percebi que isso não fazia sentido: se um dos problemas principais do país [em questão] é o saneamento, então tenho de colocar logo o tema sobre a mesa. Passei então a falar de cocó e menstruação durante as refeições. Há aqui o tabu, mas também o evitar dar más notícias. Como político, é-me mais interessante falar de tecnologia, anunciar estações de dessalinização. É bem mais sexy do que dizer que a disponibilidade de água per capita vai diminuir nas próximas décadas e que vamos ter de fazer uma gestão hídrica mais rigorosa, dando prioridade às pessoas. Quem tem coragem de fazer isso? Se queremos colocar em prática o direito humano à água, esta é a primeira coisa que os políticos têm de fazer.