Chegámos aos oito mil milhões. E os fungos vão ajudar a alimentar a humanidade

Somos 8000 milhões de seres humanos e a alimentação é cada vez menos sustentável. Estará a solução nos microorganismos e nas proteínas alternativas? Com menos solo, água e com muito menos animais.

Foto
José Alves

Carne feita em laboratório, leite produzido por microorganismos numa “fermentação de precisão”, proteína de ervilha, peixe de aquacultura, algas, cogumelos, insectos – a forma como nos iremos alimentar no futuro já está aí. Algumas destas práticas são cada vez mais comuns, outras estão ainda a dar os primeiros passos, mas esta terça-feira, 15 de Novembro de 2022, o dia em que atingimos os 8000 milhões de seres humanos no planeta, já conseguimos vislumbrar os caminhos a explorar para conseguirmos alimentar-nos num planeta cujos recursos estão sujeitos a uma pressão cada vez maior.

O relatório da Comissão EAT-Lancet, que propõe uma dieta saudável a partir de um sistema alimentar sustentável, avisa que devemos, até 2050, reduzir o consumo de carne vermelha e de açúcar em mais de 50% e duplicar o consumo de fruta, vegetais, frutos secos e legumes. Se pensarmos em 2100, os desafios são ainda maiores e mais difíceis de imaginar. Estaremos perante um momento de viragem radical? Serão os novos caminhos realmente mais sustentáveis?

O que parece cada vez mais evidente é que o actual sistema alimentar tem falhas graves e precisa de sofrer alterações. Discute-se a necessidade de aumentar a produção de alimentos para uma população em crescimento, mas, ao mesmo tempo, desperdiçamos cerca de 30% da comida que produzimos. Muito do solo fértil do planeta está ocupado por monoculturas que muitas vezes sobrevivem à base de fertilizantes e pesticidas, com sementes com pouca variação genética e, por isso, particularmente vulneráveis a doenças. A somar a isto as dietas de uma grande parte da população mundial são desequilibradas e pouco saudáveis.

Perante este cenário, os debates sobre a transformação do sistema alimentar estão a polarizar-se. De um lado, os defensores de um caminho mais tecnológico, com alimentos feitos em laboratórios, sejam eles carne cultivada a partir de células animais (sem implicar a morte do animal), ou produtos semelhantes às actuais proteínas animais, criados a partir de proteína vegetal.

Foto
Mark Post criou o primeiro hambúrguer em laboratório a partir de células animais REUTERS/David Parry

Do outro lado, os que acreditam que é numa relação mais equilibrada com a natureza que se conseguirá alimentar o mundo e travar a destruição do planeta, promotores de uma nova revolução agrícola, que aposte na agroecologia e na agricultura regenerativa. Mas, mesmo entre este grupo, há quem aposte mais em soluções de base tecnológica para melhorar a performance agrícola, protegendo o ambiente, e quem prefira uma abordagem mais “natural”.

Sabemos já do que o corpo humano precisa para se desenvolver de forma equilibrada e saudável. Sabemos também que as nossas dietas estão muito longe disso. “No actual modelo, há uma percentagem muito elevada da população mundial – em Portugal é de cerca de 60% que consome mais calorias do que necessita”, diz ao PÚBLICO Pedro Graça, director da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto (FCNAUP).

“Ao mesmo tempo que vivemos um problema de escassez alimentar e energética” em certas zonas do mundo, existe também um “excesso de oferta energética, que traz o problema do excesso de peso e da obesidade”. O ideal será conseguirmos alterar este quadro, apostando numa “oferta menos energética e mais densa do ponto de vista nutricional”. E sublinha: “Temos tecnologia para isso.”

Há, nos debates sobre alimentação, uma palavra que tem ocupado um lugar central: proteína. Qual a sua real importância? Numa conferência organizada recentemente pela Jerónimo Martins e intitulada “A alimentação no futuro: evolução ou revolução?”, Pedro Graça explicou que “houve sempre défice de proteína na história da humanidade” e que só “a partir dos anos 70 e 80 é que, no hemisfério norte, [a proteína] começou a ser suficiente para, em média, dar resposta” às necessidades.

É, contudo, importante perceber que “o nosso organismo necessita de quantidades precisas de proteína ao longo do dia” (necessita também de vitaminas, sais minerais, gordura) e que dá sinais, quando essas proteínas são insuficientes ou em excesso. O ideal será 0,8 gramas diários por quilo de peso, sendo essas proteínas constituídas por uma série de 20 aminoácidos, nove dos quais o nosso organismo não consegue produzir.

Foto
A Algaplus é uma empresa portuguesa que se dedica ao cultivo controlado e sustentavel de macroalgas Adriano Miranda

Mas, atenção: nem todos os alimentos têm a mesma proporção de proteína. O arroz sozinho não nos vai fornecer todos os aminoácidos, mas combinado com ervilhas, e, para os carnívoros, com um pouco de entremeada de porco, sugere Pedro Graça, já constitui uma refeição equilibrada. E não adianta compensar amanhã o que não se comeu hoje. “O corpo humano não armazena proteína, como acontece com a gordura ou o cálcio. Daí a importância de fazermos refeições completas.”

Números de 2020 indicam que havia então em Portugal uma disponibilidade proteica diária de 130 gramas por pessoa, com as crianças com menos de dez anos a consumir acima da dose recomendada e os idosos abaixo do desejável.

Apesar de grande parte das dietas mundiais se terem desequilibrado completamente em favor da proteína animal, não é apenas dos produtos de origem animal que se obtêm os aminoácidos necessários. A indústria sabe isso e são os grandes produtores de carne – empresas como as brasileiras JBS, BRF e Marfrig, ou as norte-americanas Tyson Foods e Cargill – que, sem abandonar o seu negócio principal, estão agora a apostar também nas alternativas à base de plantas e na carne de laboratório (embora, no último ano, este mercado não tenha crescido à velocidade esperada).

Muitas vezes, contudo, estas soluções significam alimentos ultraprocessados, com todas as desvantagens que isso tem. Apesar de defender que, “no momento que vivemos, não deve haver dogmas e tudo deve ser equacionado, porque nunca houve tanta gente a precisar de ser alimentada”, Pedro Graça reconhece que, “em muitos casos, produtos à base de plantas, menos interessantes a nível nutricional e ambientalmente mais custosos, estão a aparecer como a solução, ao mesmo tempo que o feijão, o arroz ou o grão são vistos como pouco acessíveis, mais difíceis de preparar”. O problema, diz o director da FCNAUP, é que “quem defende a alface vai ter sempre um poder muito menor do que quem defende o processado de alface”.

Foto
Produção de pregados em regime de aquacultura, na praia de Mira Adriano Miranda

Há, no meio de todos estes debates, uma preocupação central: é preciso poupar os recursos do planeta. Isso significa aproveitar o solo e a água disponíveis da maneira mais racional possível. Aproveitando a cimeira do clima COP27, no Egipto, a rede RePlanet, que reúne uma série de organizações que procuram “soluções de base científica” para a crise climática, lançou o manifesto Reboot Food, defendendo que se reduza substancialmente a percentagem de terra fértil utilizada para produzir alimentos, o que, entre outros aspectos, teria um enorme impacto na redução dos gases com efeito de estufa.

Para o fazer, argumentam os promotores do manifesto, divulgado pelo The Guardian, há uma solução: a “fermentação de precisão” que, com a utilização de microorganismos, fungos e bactérias, permite fazer proteína com as características das de origem animal. Os microorganismos podem ser cultivados em tanques, o que significa que uma área menor do que a cidade de Londres será suficiente para produzir toda a proteína necessária para alimentar o mundo.

Para que isto se torne realidade, concluem, é preciso uma alteração de políticas: em vez de subsidiarem a produção agrícola, os governos deveriam passar a apoiar mais a inovação na área alimentar. É todo um novo modelo que aqui se propõe, uma revolução na forma como nos alimentamos. Será esse um dos caminhos para alimentar o mundo no século XXII?

Foto
Unidade de produção de microalgas da cimenteira Secil Fabio Augusto

Das algas aos insectos, tudo o que iremos comer

Estes são alguns dos cenários que estão a delinear-se para o futuro da alimentação humana:

Mar – O biólogo espanhol Carlos Duarte, professor da Universidade King Abdullah, na Arábia Saudita, e especialista em recursos marinhos, acredita que no futuro “a pesca selvagem vai ser como a pesca em terra, uma actividade marginal, quase desportiva”. Passaremos, explicou ao PÚBLICO, a “pensar no peixe e nas espécies marinhas como biodiversidade e não só como alimento”. E a fonte de alimento será a aquacultura, que vê como “o único futuro sustentável”. Mas, frisa, “não uma aquacultura como a que vemos agora, mas realmente sustentável e com uma economia circular, em que o próprio alimento é produzido no local, a partir de algas, e não subvencionado por pesca selvagem”.

Algas – Podem ser a grande base da alimentação dos peixes de aquacultura, diz Carlos Duarte. “Não tem interesse capturar 22 milhões de toneladas de peixe selvagem, pequenos pelágicos, que têm um valor nutricional muito importante e que eram o alimento-base para populações em África e no Sudeste asiático e usá-los para produzir cinco milhões de toneladas de salmão, robalo ou outro peixe. Não é sustentável. A resposta está nas algas, que podem, sem grande dificuldade, ser produzidas em muito maior escala para complementar directamente a alimentação humana (são ricas em proteína, ferro e antioxidantes), como já acontece em países como o Japão.

Fungos – O reino dos fungos é muito variado (desde os microorganismos, como as leveduras e os bolores, até aos cogumelos) e tem várias aplicações, entre as quais a capacidade de produzir proteína de uma forma, defendem alguns investigadores, mais eficaz do que a das bactérias – é a chamada “fermentação de precisão”.

Um dos exemplos, apresentado num artigo do The Guardian, é o trabalho de cientistas de Copenhaga em colaboração com o restaurante Alchemist, para criar algo com a consistência de marisco a partir de fungos filamentosos inoculados em algas.

Outro exemplo, citado pelo mesmo jornal, é a produção de “leite de vaca sem vacas”, projecto de uma start-up israelita que se propõe inserir nos microorganismos instruções de ADN para a criação de proteínas do leite numa base de gordura vegetal, açúcar e água. Os responsáveis da empresa Imagindairy garantem que para produzir leite desta forma necessitam de 10% da água e de 1% do solo necessários para o tradicional leite de vaca.

Carne de laboratório – Já existe, neste momento atinge ainda preços muito elevados, mas o objectivo é que venha a tornar-se cada vez mais acessível. A carne é criada a partir de células animais, que são depois cultivadas em laboratório. Está-se a trabalhar na melhoria da textura, para a tornar cada vez mais próxima daquela que conhecemos.

Foto
Apanha de cogumelos na Quinta dos Baldo, Bragança Anna Costa

Leguminosas – A comissão EAT-Lancet prevê que até 2050 vejamos um aumento da produção de leguminosas e frutos secos entre 100% e 200%. Grande parte destes alimentos servirá de base para os muito referidos produtos à base de plantas, muitos deles imitando carne, seja em forma de hambúrgueres, salsichas ou almôndegas. Neste momento, um problema de que fala Marta Vasconcelos, da Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica do Porto, numa conferência da Jerónimo Martins sobre a alimentação do futuro, é que Portugal não produz leguminosas em quantidade suficiente – importa grande parte delas dos EUA, Argentina, México, Etiópia, Espanha, e usa entre 61% e 69% em rações para animais, ou seja, a forma menos eficaz, mas ainda dominante, de se produzir proteína.

Insectos – São outra importantíssima fonte de proteína que está crescentemente a ser incorporada em diversos alimentos (geralmente sob a forma de farinha), mas que se depara ainda com muitos preconceitos por parte dos consumidores, sobretudo no Ocidente, e, em alguns casos, aguarda actualização da legislação para poder ser utilizada.