Roberto Saviano em tribunal por chamar “canalha” a Georgia Meloni

O caso remonta a 2020, quando a actual primeira-ministra italiana era ainda oposição. Em fundo, a crise dos migrantes no Mediterrâneo e a forma como ela é encarada pela política de extrema-direita.

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Roberto Saviano Pedro Nunes

Roberto Saviano, o jornalista e escritor italiano que vive sob protecção policial desde a publicação de Gomorra, onde expunha o crime, a violência e as ligações políticas da máfia do seu país, será ouvido em tribunal esta terça-feira, acusado de difamação pela actual primeira-ministra de Itália, Georgia Meloni, líder do partido de extrema-direita Irmãos de Italia (FdI). Num programa televisivo, em Dezembro de 2020, Saviano chamou “bastarda” ("canalha, estupor") a Meloni, no âmbito de um debate sobre os migrantes do Mediterrâneo.

Em Novembro do ano passado, Meloni deu entrada com a acusação judicial, e, em Setembro último, o promotor do Ministério Público Pietro Pollidori confirmou a validade da acusação. A primeira sessão do julgamento está marcada para esta terça-feira, em Roma. Em 2019, Saviano foi processado, também por difamação, por Matteo Salvini, líder do Liga, partido de extrema-direita que integra a coligação governativa vencedora das últimas eleições italianas – o processo ainda corre, em Fevereiro haverá nova sessão em tribunal.

Salvini, de resto, foi também alvo daquele “bastardi” proferido por Saviano durante o programa Piazzapulita, do canal televisivo La7. Naquele momento, debatia-se a política italiana em relação aos migrantes, tendo como pano de fundo uma tragédia ocorrida pouco antes, quando um bebé de seis meses morreu afogado depois de cair dos braços da mãe enquanto um barco da associação Open Arms tentava resgatar migrantes perdidos no mar – foram salvos 111, o bebé, apesar de retirado da água ainda com vida, não resistiu.

O caso ganhou especial notoriedade em Itália depois de o diário Avvenire, de inspiração católica, ter disponibilizado um vídeo em que se vê o desespero da mãe do bebé, acompanhado de um editorial muito crítico para com o tratamento dado pelo Estado italiano aos migrantes.

O La Reppublica recordava em Setembro as declarações de Roberto Saviano que desencadearam o processo por difamação a Georgia Meloni. No Piazzapulita, depois de serem emitidas imagens do resgate, exclamou: “Toda a porcaria que foi dita sobre as ONG será agora recordada: ‘táxis do mar’, ‘cruzeiros’… Isto só vem de canalhas. Para Meloni, para Salvini, canalhas, como puderam? Como foi possível descrever assim toda esta dor? Ter uma opinião política é legítimo, mas não sobre uma emergência”.

Em comunicado emitido esta sexta-feira, a primeira-ministra italiana defendeu a posição assumida em relação aos migrantes: “Naquele barco estavam migrantes, não náufragos.” Um artigo de opinião assinado por Furio Colombo, este domingo, no La Reppublica, cita Meloni de forma mais aprofundada. Diz Georgia Meloni: “Se se cruzar acidentalmente no mar com uma embarcação em dificuldades, é seu dever salvar quem quer que esteja a bordo. Mas, se anda para trás e para a frente entre a costa africana e italiana para transportar migrantes, está a violar declaradamente a lei do mar e a legislação internacional.”

Em declarações ao Observer este sábado, Roberto Saviano recorda ter sentido estar perante um momento de mudança naquele Novembro de 2020. “Tínhamos esperança de que esta tragédia abrisse os olhos das pessoas e abanasse as suas consciências, mas de Meloni e de Salvini veio apenas propaganda antimigrante desumana”, acusou. “Meloni fala destes barcos de ONG como piratas; disse que deviam ser afundados, a sua tripulação detida. Todos sabemos o que isso significa: a guarda costeira líbia é composta das mesmas milícias que gerem os campos [de migrantes] e organizam a sua partida.”

O processo foi iniciado à luz de um artigo do código penal italiano que determina a difamação como crime punível entre seis meses e três anos de prisão. No início deste mês, o International Press Institute (IPI), organização sediada em Viena, Áustria, e dedicada à defesa e promoção da liberdade de imprensa, publicou um relatório em que analisa os potenciais perigos que os jornalistas italianos poderão ter de enfrentar na vigência do actual governo de extrema-direita. Um dos itens em análise é, precisamente, a reforma do código penal do país no que diz respeito à “difamação através da imprensa”.

O IPI refere que, nos últimos dois anos, o Tribunal Constitucional do país tem manifestado a urgência de uma reforma profunda das leis que abrangem a difamação, alertando que penas de prisão são, nesse caso, institucionais. Até agora, porém, a legislação mantém-se e, nota o IPI, tem-se como “improvável” que o novo governo “avance com o processo de reforma”.

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