Confinamentos podem vir a ser regidos por norma inconstitucional?

Sugestões de revisão da lei fundamental feitas por comissão encarregada do anteprojecto de lei de emergência sanitária suscitam críticas.

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O anteprojecto de lei prevê que seja a autoridade de saúde a decretar o confinamento obrigatório Rui Oliveira

As sugestões de alteração à Constituição vindas da comissão de especialistas que o Governo encarregou de elaborar o anteprojecto de lei de emergência sanitária podem padecer de… inconstitucionalidade.

Esta é a opinião de um juiz que coordenou um curso de Direito de Emergência Sanitária no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Joaquim Correia Gomes. E não estará isolado na sua posição, tendo em conta a forma como os juízes do Tribunal Constitucional têm discorrido sobre o assunto.

Elaborado por uma comissão dirigida pelo antigo presidente do Supremo Tribunal de Justiça Henriques Gaspar, o anteprojecto descartava a necessidade de rever a Constituição. Porém, foram várias as vozes que se fizeram ouvir na altura sobre a necessidade de promover alterações à lei fundamental, sem as quais os confinamentos decretados no âmbito desta ou de outra qualquer pandemia continuariam a ser ilegais fora do estado de emergência, uma vez que correspondiam à privação de um direito fundamental, o direito à liberdade.

Na sequência deste debate, António Costa pediu à comissão técnica que sugerisse alterações à Constituição que reforçassem a segurança jurídica do seu anteprojecto. Para o grupo liderado por Henriques Gaspar, e que além deste magistrado conta com um representante da provedora de Justiça e um especialista em saúde pública, a melhor forma de o fazer passa por aditar uma nova alínea ao 27º artigo da Constituição, que estabelece as situações em que alguém pode ser legitimamente privado de liberdade. O texto emanado da comissão fala em “separação de pessoa portadora de doença contagiosa grave ou relativamente à qual exista fundado receio de propagação de doença ou infecção graves”, deixando exclusivamente às autoridades de saúde a decisão sobre estes confinamentos.

Recorde-se que o Tribunal Constitucional já por duas dezenas e meia de vezes declarou que os diplomas que permitiram as medidas tomadas neste sentido fora do estado de emergência eram violadores da Constituição. Mas a comissão defende que estes confinamentos não precisam de autorização ou confirmação judicial – embora possa ser exigível “a confirmação ou validação” por um juiz de uma medida de isolamento ou de quarentena decretada pelas autoridades de saúde.

"Pior a emenda que o soneto"

Joaquim Correia Gomes encara esta sugestão como uma proposta de trabalho interessante, mas aponta-lhe alguns problemas sérios. “Ao atribuir exclusivamente à autoridade de saúde a decisão de separação de doente infecto-contagioso ou suspeito de propagar tal doença, sem a devida previsão constitucional de confirmação ou decretamento pelo tribunal”, a proposta incorre num “sério risco de passarmos a ter uma norma constitucional inconstitucional”, observa, dado estarmos perante uma função exclusiva dos tribunais. “Será caso para dizer pior a emenda que o soneto”, critica o magistrado.

Essa é também uma objecção do constitucionalista Vitalino Canas, para quem a decisão da autoridade de saúde de confinar alguém tem de ser susceptível de uma qualquer forma de recurso urgente para os tribunais. O professor catedrático Jorge Bacelar Gouveia admite que, fora do estado de emergência, o imbróglio possa ficar resolvido com a possibilidade de recurso dos confinados a um juiz de instrução, que decida num curto prazo, de 48 horas, se determinada quarentena foi imposta de forma legítima ou não. Se nada disser – e poderá fazê-lo já com o confinamento em curso – assume-se que ratificou de forma tácita a medida.

Vitalino Canas apresenta ainda outra objecção: “A comissão continua a insistir que o confinamento é simplesmente uma restrição da liberdade e que, portanto, não recai no grupo especialmente qualificado de restrições da liberdade que são as privações da liberdade”. Ora no seu entender o confinamento obrigatório, a quarentena, o isolamento são medidas restritivas da liberdade que se podem considerar especialmente graves, razão pela qual têm de ser consideradas medidas privativas da liberdade.

Fazendo notar que o termo “separação” é equívoco, Joaquim Correia Gomes faz notar que a comissão técnica não está a levar em conta toda a jurisprudência produzida pelos magistrados do Palácio Ratton precisamente no que a esta matéria diz respeito: “Quando estão em causa medidas de isolamento ou de quarentena no domicílio não estamos perante restrições, mas perante privações totais de liberdade. Daí que não se compreenda a insistência da comissão em manter que tais medidas são de mera restrição da liberdade”.

António Costa remeteu as sugestões dos especialistas para a Assembleia da República, para integrarem o processo de revisão constitucional.

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